O PROJETO A COR DA CULTURA DIVULGA O QUE MOÇAMBIQUE TEM EM EDUCAÇÃO. VOCÊ MOSTRA NOS DIVULGAMOS
Aos alunos de 1993 da Escola Primária Filipe Samuel Magaia, de Mafambisse
A primeira escola e a primeira namorada
são igualmente inesquecíveis. Recordo o primeiro dia de aulas, sinto o
nervosismo pontudo que se prova no primeiro exercício de romper a
virgindade: querer e não-querer! Camisa-calções-meias-sapatilhas novas,
tiracolo de malhas-militares, condecorada, e uma moeda que valia dois
mata-fomes, que nós chamávamos de burguesia, e um copo de sumo diluído
da cantina do so Manel, e comíamos tudo nos interstícios de uma grande
árvore, antes de lá estabelecerem um urinol. A escola, essa memorável,
tinha apenas um bloco bem-parecido de cimento, de três salas e umas
poucas carteiras apropriadas, e lá aprendiam exclusivamente as quartas e
quintas classes, nós, os da primeira, e os outros, ficávamos nas salas
de chapasdezinco, com um chão de areiavermelha onde, sem preferências,
sentávamos as nossas nádegas. Eu, ditosamente, sempre tive aquela
coleguinha de totós e vestidos rosa perto de mim, bonita e rica, ela
trazia sempre um banco bem-feito de madeira.
Na minha primeira escola, Filipe Samuel
Magaia, só Magaia para os de dentro, aconteciam coisas maningue
engraçadas que, naquele tempo do antigamente, nós ignorávamos. Há dias
dei por lá uma voltinha, estava vazia, possuía muitas salas novas e uma
pintura muito simpática. As árvores muito grandes já não existiam,
sobretudo uma, onde ficava suspenso um pedaço de linha férrea não sei
trazida de onde. Era o nosso sino e ecoava igual a um. O que era mesmo
maningue engraçado, e de que nós gostávamos muito, é que de vez em
quando, uma senhora que andava com o tronco nu, com os seios a
moverem-se, a Maria Maluca, aparecia e, com muito gozo, punha-se a
surrar a linha com uma pequena âncora, e saímos todos para o recreio,
felizes nós e atrapalhados os professores.
Os intervalos eram também maningue nices:
nos pequenos ficávamos no pátio da Magaia, jogando massacala,
inventando fintas que Maradona não inventara, pois ainda não conhecíamos
o Eusébio. Nos intervalos maiores, se não ficávamos no centro da árvore
a comer burguesia, então corríamos ao Mabaixo, para comprar badjias
numa tia branca, que usava uns temperos de fazer a boca arder. Às vezes,
durante o intervalo maior, saímos para passear na zona da padaria e do
supermercado, tomando sempre cuidado com os estranhos, não fôssemos
então aceitar chuingas e chupa-chupas, os mais-velhos falavam sempre dos
tatá-mamãs e tatá-papás. Mas eu não me enchia de medo de estranhos, eu
odiava os militares, os Capacetes-azúis, aqueles incompreendidos da
ONUMoz, dizia-se que compravam camaleões para confeccionarem enlatados, o
que não fazia sentido para mim; mas eu não aprovava mesmo que andassem
por aí a levar às coisas das pessoas, que culpa eu tinha se uma mochila
comprada novinha numa esquina do bazar tinha as cores militares?
Magaia era uma escola simples, era a
primária mais famosa da vila, porque ficava no Bairro 1, na zona
principal, de casas mais bonitas e embelezadas do que a escola, e só
viria a perceber o motivo disso depois das aulas de finanças públicas.
Todas as crianças do meu bairro andavam lá, o Cidálio, o Paulito, esses
eram do meu grupo, juntos até a terceira classe. Existia, na casa do
Paulito, uma amendoeira que dava uns frutos pequenos e muito doces.
Comíamos maningue, e depois a língua e os lábios ficavam maningue
vermelhos. Perto da Magaia existia um cinema-sem-nome, velho, infestado
por morcegos e com os assentos esburacados. Nunca vi lá um filme, já não
rodavam nada desde quando eu tinha quatro anos, só uns jovens
usavam-no, ocasionalmente, aos sábados, para imitar o Fantasia, aquele
programa que buscava talentos musicais e passava na TVM, cuja música de
abertura dizia “Não importa ganhar, o que importa é participar…”. Bem
perto do velho cine-sem-nome ficava um pomar, repleto de laranjas e
toranjas. As toranjas eram maningue azedas mas, assim mesmo, com um
pouco de sal a acompanhar, limpávamos um bom número.
Magaia era uma escola sorridente, sorria
sempre, mesmo com o sol maluco sobre as chapasdezinco fazendo-nos
transpirar maningue, ou com aquele vento vindo daquele redemoinho que
ninguém tivera a coragem de cobrir com uma peneira, que fazia as chapas
voarem ou as salas tombarem, ferindo os alunos desafortunados. Os
professores da Magaia também eram maningue nice, estou a falar daqueles
do antigamente, quando recitávamos o Paulo e a Aida e cantávamos muito
até ficarmos sem voz, em jeito de vingança mesmo. Alguns já morreram,
uns velhos de tanto beberem nipa ou com os pulmões estoirados devido ao
pó de giz, sem nunca terem direito a um copo de leite; outros foram-se
jovens, mesmo jovens. Mas aqueles professores, como o stor António, as
storas Laura, Joana, Ester, eles amavam o que faziam, eram vocacionados,
não como esses deste nosso tempo de hoje, de dez mais um ou doze mais
um, eteceteras, tempo de professores sem espírito algum.
Magaia foi a minha primeira escola, nela
eu dei os primeiros passos para a construção do homem que hoje sou, isso
diria o camarada presidente Samora; na Magaia aprendi a cantar músicas
de macacos do campo e baratas da cidade, a bater na mochila com ginga de
baterista de rock; na Magaia dei o meu primeiro beijo, logo depois de
uma aula, roubado com esperteza de carteirista e bravura do Power Ranger
Vermelho, aquele maningue nice em cenas de porrada; na Magaia eu
aprendi que levar a sacola dos livros à cabeça significava chumbar e,
principalmente, que as aulas de explicação não eram destinadas a todos.
Porém, de verdade, sem sequer me ter dado conta, foi naquela escola
pequena, de salas quentíssimas e professores amáveis, que já não é a
mesma, que eu aprendi que a escola desfralda-nos a cabeça, assim mesmo,
suavemente ou à bruta, com uma chavedefendas e martelo.
Elucidário Burguesia – lanche, merenda Mabaixo – zona
baixa, subúrbio Maningue – muito Maningue nice – muito bom Massacala –
bola feita de saco Nipa – aguardante Stor/ stora – professor, professora
Nenhum comentário:
Postar um comentário