28/08/2008 23:37:00
A literatura afro-brasileira e seu autor maior: Machado de Assis
Por Elizabeth R. Z. Brose
As
noções de literatura afro-brasileira e de literatura negra são
discutidas no Brasil há décadas, mas atualmente ainda são consideradas
noções em construção no país. Conseqüentemente, os critérios para as
seleções de textos literários afro-brasileiros também são variados. Um
deles seria o da representação do negro no texto, seja na poesia, em
peças teatrais e em narrativas, desde os relatos acerca do Novo Mundo
até a literatura contemporânea. Outro critério seria o da cor da pele do
escritor que poderia provocar a expressão de uma perspectiva negra e
brasileira, caso o escritor assumisse publicamente a sua negritude. Por
fim, a proposta deste trabalho é situar a obra de Machado de Assis na
discussão sobre literatura afro-brasileira, fundamentando a resposta
para essa pergunta nas pesquisas de Eduardo de Assis Duarte, publicadas
no livro Machado de Assis: afro-descendente.
O
objetivo primeiro da literatura de viagens é revelar todas as
informações possíveis sobre os descobrimentos marítimos, tais como:
registro de rotas, clima, descrição da costa, enfim, o que possa
facilitar as próximas navegações. Além disso, os relatos de viagem
esclarecem aos próximos viajantes os caminhos abertos por terra, os
habitantes dos lugares desconhecidos, usos, costumes, flora e fauna. Do
século XVI, o Roteiro da Primeira Viagem de Vasco da Gama, atribuído a Álvaro Velho fundamenta o repertório de textos chamados de literatura de viagens, assim como a Carta a D. Manuel sobre o Descobrimento do Brasil, de Pero Vaz de Caminha, e História Geral das Guerras Angolanas, de António Oliveira Cadornega.
Na
mesma obra, o historiador português transcreve documentos, um deles é
uma carta de autoria da rainha Jinga - uma rainha africana, convertida e
batizada como Anna pelos padres. A rainha falava português; liderava
seu povo e vendia escravos para os portugueses. Na carta, ela explica as
diferenças de comportamento entre os que vendem escravos, os que
compram e o que é dito sobre eles.
Senhor:
Receby
a carta de V. Sa. , aqual me entregou o Capitão Frois Peixoto,
embaixador de V. Sa., e por ela vejo gosar V. Sa. Saúde, aqual nosso
Senhor aumente por largos anos, com muita paz e quietação, como desejo
para mim. (...)
Não
podia V. Sa. mandar-me embaixador que mais me alegrasse, que o Capitão
Manuel Frois Peixoto, por saber bem declarar-me tudo pela língua deste
meu Reyno. Todos meus grandes estão contentes, que dizem que só ele me
traz verdadeira, e fala verdade e tudo o que V. Sa. lhe ordena por seu
Regimento e já me considero com a prenda que desejo e com muita paz e
quietação esses dias que viver que já sou velha e não quero deixar
minhas terras, senão minha Irmãa, não a meus escravos, que haverá muita
ruína e não saberão obedecer a Sua Majestade, que Deos Grande, e como
minha Irmãa o saberá fazer pois há tantos annos que assiste com os
brancos e he tão côa christã como me dizem. (...)
Matamba minha Corte treze de Dezembro de mil seiscentos e cincoenta e cinco annos. R. D. ANNA
(in História Geral da Guerras Angolanas, António de Oliveira de Cadornega, Tomo II, pp. 500-503)
Por que a Literatura afro-brasileira ou negra seria hoje um conceito em construção?
Pesquisas de Eduardo Assis Duarte e sua equipe, assinalam, no portal da UFMG LITERAFRO, que a literatura afro-brasileira é um
processo
e devir. Além de segmento ou linhagem, é componente de amplo
encadeamento discursivo. Ao mesmo tempo dentro e fora da Literatura
Brasileira. Constitui-se a partir de textos que apresentam temas,
autores, linguagens, mas, sobretudo, um ponto de vista culturalmente
identificado à afro-descendência, como fim e começo. Sua presença
implica redirecionamentos recepcionais e suplementos de sentido à
história literária canônica. (LITEAFRO:2008)
O
espectro constituinte da literatura afro-brasileira é amplo: temas,
autores, estratégias, e, sobretudo, ponto de vista identificado com a
afro-descendência. A seguir, na redação dos objetivos desse projeto de
pesquisa, a adjetivação reduz o foco, pois a finalidade seria:
divulgar
e estimular a pesquisa e a reflexão a respeito da produção literária
dos brasileiros afro-descendentes. Lugar rizomático, elo e ponto de
encontro. Mas, também, ambiente lacunar, feito de presenças e ausências,
que adquire sentido pelo que apresenta e pelo que ainda está por vir e
apresentar. Espaço em construção, aberto sempre a visitas e
intervenções. (idem)
No artigo Literatura e Afro-descendência, Eduardo
Assis Duarte, (LITERAFRO, 2008), procura as diferenças e semelhanças
entre textos escritos por autores brancos e negros. Ele começa com a
epígrafe de Roger Bastide: Não
existe, na aparência, diferença essencial nos trabalhos dos brasileiros
brancos e de cor. Mas justamente não passa de aparência, que dissimula
no fundo contrastes reais. Fernanda Arêas Peixoto explica em Diálogos brasileiros: uma análise da obra de Roger Bastide [i]
que o francês se opôs à idéia de sincretismo como equivalência à de
mistura, à de mosaico, ou seja, à idéia de que objetos discordantes
coexistam.
Dessa
perspectiva, Bastide desconstrói a relação de correspondência das
entidades africanas e dos santos católicos, apresentando, por outro
lado, a necessidade histórica de dissimulação de crenças dos africanos e
de seus descendentes frente aos brancos. Para ele, a vinda de africanos
ao continente americano não promoveu a formação de “ilhas culturais”
africanas, mas, sim, propiciou o resultado atual de contatos culturais,
cuja produção dissimula a diferença.
A partir da epígrafe, em que Bastide
sugere contrastes reais dissimulados sob os textos escritos por negros e
brancos sem diferenças aparentes, Eduardo de Assis Duarte define a
literatura afro-brasileira. Para ele, “a literatura “negra” ou
“afro-brasileira” passa necessariamente pelo abalo da noção de uma
identidade nacional una e coesa” (LITERAFRO, 2008).
Essa
falta de coesão seria o motivo de tantas omissões na historiografia
literária brasileira que recusaria “muitas vozes, hoje esquecidas ou
desqualificadas, quase todas oriundas das margens do tecido social.”
(idem) A estética branqueadora ainda teria apagado deliberadamente os
vínculos autorais ou textuais com a etnia africana, fomentando assim a
idéia de miscigenação pelo apagamento da cor negra. Essa produção
literária sofreu impedimentos de divulgação e de publicação e, por isso,
as pesquisas atualmente precisam recorrer a textos inéditos, a pequenas
edições ou a suportes alternativos.
O
apagamento desses escritos da história da literatura ou a desvinculação
da afro-descendência do autor ou do texto, resulta na ausência de uma
seleção de obras literárias que consolidem os estudos da literatura
afro-brasileira no país. Para Duarte,
tanto
no passado quanto no presente, em virtude do número ainda insuficiente
de estudos e pesquisas a respeito, apesar do crescente esforço nesta
direção. A inexistência de uma recepção crítica volumosa e atualizada,
bem como de debates regulares nos fóruns específicos da área de Letras,
decorre desses fatores e também da ausência da disciplina “Literatura
Afro-brasileira” nos currículos de graduação e pós-graduação da maioria
dos cursos de Letras instalados no Brasil. Como conseqüência, mantém-se
intacta a cortina de silêncio que leva ao desconhecimento público e
vitima a maior parte dos escritores em questão. (DUARTE, LITERAFRO,
2008)
Exemplo
desse silenciar, de acordo com a introdução de Maria do Carmo Lanna
Figueiredo e Maria Nazareth Fonseca (FONSECA, 2002), seria a
marginalização do mercado editorial de livros literários, cujos textos
tornam-se espaços de resistência dos negros. Raras são as publicações
consagradas como os Cadernos Negros[ii], com 30 anos de existência.
Por outro lado, desde os anos 1980, a historiografia literária tem discutido o corpus,
os métodos e os pressupostos a partir das reflexões advindas do
feminismo, do movimento negro e de grupos como o Quilombhoje. Duarte
cita os principais nomes desse grupo de pesquisadores: Moema Parente
Augel, Zilá Bernd, Domício Proença Filho, Oliveira Silveira, Oswaldo de
Camargo, Luiza Lobo, Leda Martins, David Brookshaw.
Seguindo
o pensamento de Eduardo Duarte, nota-se um conflito. Um dos empecilhos
para a constituição de uma literatura afro-brasileira seria:
nossa
constituição híbrida de povo miscigenado, em que linhas e fronteiras de
cor perdem muitas vezes qualquer eficácia. As relações inter-raciais e
interétnicas constituem fenômeno concernente à própria formação do
Brasil como país. Ao longo de nossa história, o fenômeno da mistura de
raças e culturas recebeu distintos tratamentos, indo da idealização
romântica de uma terra sem conflitos ao mito da democracia racial, por
um lado; e da condenação racialista típica do século XIX ao
fundamentalismo de muitos segmentos contemporâneos, que rejeitam a
mestiçagem e defendem a existência de uma possível essência racial
negra, por outro. (idem)
Para
o autor, somos híbridos e miscigenados, mesmo argumento já citado para
justificar esse silenciar: sendo todos afro-brasileiros, o apagamento
das diferenças na historiografia literária brasileira seria legítimo.
Ainda para Eduardo Assis Duarte, sobrepondo critérios étnicos ou
identitários ao da nacionalidade, “nossa literatura seria uma só”, pois
ao fim e ao cabo “somos todos brasileiros”. E, se somos todos “um pouco”
afro-descendentes, essa discussão não faria sentido. A literatura
afro-brasileira não seria sequer uma noção em construção, e sim, nenhuma
noção com fundamento.
Maria Nazareth Soares Fonseca escreveu no ensaio Poesia afro-brasileira – vertentes e feições (FONSECA, 2008) que os termos “literatura negra” e literatura “afro-brasileira” nomeiam
alguns
tipos de produções artístico-literárias que podem estar relacionadas
tanto com a cor da pele de quem as produz, com a motivação dada por
questões específicas de segmentos sociais de predominância negra e ou
mestiça, e com o fato de nelas serem trabalhadas, com maior intensidade,
questões que dizem respeito à presença de tradições africanas
disseminadas na cultura brasileira. (FONSECA, 2006)
Para
a autora, há duas vertentes que decorrem “do modo como se ligam à
temática negra ou afro-descendente” (idem). Uma enfrenta o preconceito
contra os afro-descendentes e denuncia a exclusão, relacionando a obra
literária com o ideário do escritor que se assume publicamente negro e
herdeiro de uma história familiar com ascendentes escravos.
A
outra vertente, também enfrenta o preconceito e a exclusão, mas procura
detectar no texto os procedimentos que a escrita propõe para a
oralidade e para os ritmos do corpo. Maria Nazareth Soares Fonseca
informa que:
A
discussão de aspectos da obra de escritores que, na época atual, elegem
como tema de seus livros aspectos relacionados com as heranças
africanas, percebendo-as num jogo intenso com outras tradições informa
sobre tensões presentes em textos que, assumem a escrita, mas não
pretendem silenciar a profusão de vozes que os invade, advindas dos
estratos de predominância oral. Nesse sentido, a análise de algumas
antologias literárias, construídas com o propósito de destacar a
produção poética de escritores afro-descendentes brasileiros pode se
mostrar como um caminho bastante eficaz para a investigação de textos
literários que ainda circulam pouco nos meios acadêmicos e nos programas
de literatura adotados pelas escolas. (idem) [iii]
E
“o que seria a Literatura Negra sob a perspectiva semiótica, do dito e
do não dito?” Essa é a pergunta-título do ensaio de Silvia Regina
Lorenso Castro (CASTRO, 2008). A pesquisadora explica que, em A escrita e os excluídos,
Alfredo Bosi (2002) considera escrever um ato de cidadania: tanto
colocando o marginalizado como objeto da narrativa - tema, personagem ou
situação narrativa – ou como sujeito - enunciador.
Para
a autora, a semiótica procura o sentido que resulta da diferença entre
dois termos ou mais, os quais estabeleceriam pelo menos relações
mínimas. Sendo assim, a principal relação entre a literatura brasileira e
a afro-brasileira seria que a segunda é silenciada e menos visível do
que a primeira. A visibilidade da literatura brasileira e a falta de
visibilidade da literatura afro-brasileira ou negra, para usar a
expressão de Maria Nazareth Soares Fonseca (FONSECA, 2000), caracteriza a
relação entre ambas, isto é, o que determina a relação entre as duas
literaturas são a visibilidade e a ocultação de sua produção.
Rompendo
com essa invisibilidade, o movimento social negro brasileiro, nos anos
1970, denuncia publicamente as condições de existência do negro
brasileiro. Em 25 de novembro de 1978, a mencionada antologia Cadernos Negros é
publicada, tentando superar a geração mimeógrafo e, em 2007, comemora
com a publicação do trigésimo volume a inclusão no debate acerca do
racismo, da discriminação e do preconceito racial. Além do tema, outra
característica constante dos Cadernos Negros é o fato de
proporcionar a publicação coletiva como estratégia de resistência
semelhante àquela usada nos quilombos com o intuito de oferecer
“visibilidade dos autores e de textos afros” (Cadernos Negros, 2007, p. 11).
Visibilidade
e invisibilidade são duas questões fundamentais da escrita
afro-brasileira. Brookshaw (1983:152) trata das estratégias da ocultação
da etnia na literatura ao escrever sobre as conclusões de C. L. Innes.
Em primeiro lugar, o autor poderia esconder-se atrás de uma espetacular
habilidade de escrita, criando obstáculos para que o crítico descobrisse
sua origem. Em segundo lugar, o escritor afro-brasileiro poderia
escrever com formas dialetais de nativos, com humor e ternura. A
terceira opção seria protestar contra a linguagem e a forma literária de
tradição européia.
Dessas
perspectivas, o estudo analisa obras literárias de escritores
brasileiros e conclui que Machado de Assis teria produzido textos
dissociados de suas origens étnicas; Cruz e Sousa teria feito
referências camufladas através de símbolos; Tobias Barreto teria evitado
o confronto com as origens raciais através de seu interesse pela
filosofia alemã; Domingos Caldas Barbosa teria escrito como nativo, e,
finalmente, as obras de Lima Barreto e Luiz Gama não teriam ocultado o
protesto.
1. escritores
brasileiros que se nomeiam escritores negros, e que proclamam a
literatura negra, isto é, afro-brasileira, ressaltando sua africanidade.
2. são
intérpretes e porta-vozes dos anseios, dos sentimentos e ressentimentos
da maioria anônima dos brasileiros de origem africana.
A afro-brasilidade seria, então, segundo Moema Parente Augel, uma questão ligada aos estratos sociais, mas não idêntica a eles. Sendo
a cor da pele negra o critério que deflagra a noção de escritor
afro-brasileiro, vejamos o verbete correspondente: o dicionário Houaiss
explica que afro-brasileiro é o adjetivo que se refere concomitantemente
à África e ao Brasil, que apresenta um amálgama das duas culturas,
refere-se ao brasileiro de ascendência africana, e refere-se também ao
negro brasileiro.
Já
pardo é um vocábulo datado de 1526 que adjetiva o indivíduo filho de
pai branco e de mãe preta (ou vice-versa); que ou aquele que descende de
brancos e negros; que ou aquele que apresenta traços das raças
(sic) negra e branca; que ou aquele que não apresenta traços raciais
definidos; mestiço de negro, índio ou branco, de pele morena clara ou
escura; que ou aquele que tem cor parda, acastanhada. A
afro-descendência não coincide, portanto, com a cor negra, o que
resultaria em um vasto elenco de autores do repertório de obras como o
da representação literária.
Contemporaneamente,
acrescentaram-se dados e descobertas à discussão sobre raças humanas.
Dois manifestos sobre raça, afro-descendência e racismo no Brasil foram
publicados e divulgados amplamente em 14 de maio de 2008. Retiro e grifo
da edição da Folha de São Paulo, caderno Cotidiano, páginas 4 e 5, os
próximos trechos assinados, cada um deles, por centenas de intelectuais e
líderes de movimentos populares e negros, e entregues ao presidente do
Supremo Tribunal Federal, ministro Gilmar Mendes:
Do manifesto intitulado Cidadãos anti-racistas contra as leis raciais:
Raças
humanas não existem. A genética comprovou que as diferenças icônicas
das chamadas raças humanas são características físicas superficiais, que
dependem de parcela ínfima dos 25 mil genes estimados do genoma humano.
A cor da pele, uma adaptação evolutiva aos níveis de radiação
ultravioleta vigentes em diferentes áreas do mundo, é expressa em menos
de dez genes! Nas palavras do geneticista Sérgio Pena: "O fato assim
cientificamente comprovado da inexistência das "raças" deve ser
absorvido pela sociedade e incorporado às suas convicções e atitudes
morais. Uma postura coerente e desejável seria a construção de uma
sociedade desracializada, na qual a singularidade do indivíduo seja
valorizada e celebrada. Temos de assimilar a noção de que a única
divisão biologicamente coerente da espécie humana é em bilhões de
indivíduos, e não em um punhado de "raças".
Não foi a existência de raças que gerou o racismo, mas o racismo que fabricou a crença em raças. O
"racismo científico" do século 19 acompanhou a expansão imperial
européia na África e na Ásia, erguendo um pilar "científico" de
sustentação da ideologia da "missão civilizatória" dos europeus, que foi
expressa celebremente como o "fardo do homem branco". Os poderes
coloniais, para separar na lei os colonizadores dos nativos,
distinguiram também os nativos entre si e inscreveram essas distinções
nos censos. A distribuição de privilégios segundo critérios etno-raciais
inculcou a raça nas consciências e na vida política, semeando tensões e
gestando conflitos que ainda perduram. (...)
(Cidadãos anti-racistas contra as leis raciais: 2008)
Do Manifesto em defesa da justiça e constitucionalidade das cotas, o quesito “Raça e inclusão” afirma que:
A
parte do documento (citado acima) dedicada à genética é particularmente
confusa e inútil, além de contraditória para os seus próprios
objetivos. Seu interesse é minar a realidade da diferença entre os seres
humanos pelo fenótipo e demonstrar a mestiçagem genética que
caracteriza a todos nós. Com isso, pretendem invalidar a possibilidade
de que se adotem cotas para negros nas universidades ao "demonstrar" que
"cientificamente" não existem negros. Para tanto, passam a afirmar que
há negros com carga genética mais européia que africana, obviamente, uma
carga genética que não se revela na aparência física da pessoa.
(...)
os defensores das cotas jamais falaram em raça no sentido biológico do
termo. Somos nós que defendemos políticas públicas para a comunidade
negra, que enfatizamos ser o racismo brasileiro o resultado histórico de uma discriminação dos brancos contra as pessoas de fenótipo africano.
O Alto Comissariado da Organização das Nações Unidas para a Eliminação do Racismo trabalha justamente nesta direção: a
escravidão é considerada, como o Holocausto, um crime contra a
humanidade imprescritível e por isso insta os países da diáspora
africana nas Américas e no Caribe a desenvolver políticas de ações
afirmativas para os descendentes de africanos escravizados.
Prestar
conta do seu passado racista, colonialista e genocida diante dos
escravizados e dos povos indígenas originários é uma discussão política
que atravessa os cinco continentes (...)
(Manifesto em defesa da justiça e constitucionalidade das cotas: 2008)
Os
dois documentos, embora discordem quanto à política pública das cotas
universitárias, concordam que o racismo existe no Brasil, e é praticado
para determinar hierarquias sociais, financeiras, culturais, estéticas,
etc. Sendo assim, a afro-brasilidade de autores e de suas obras
centra-se na idéia de racismo e não de raça. O racismo, em uma família
composta por múltiplas cores, pode ser sentido até pelo filho branco que
esconde a identidade de sua família ou vice-versa como indicam as
questões de visibilidade e invisibilidade.
Então
a visibilidade que é apagada ou revelada pelos autores e por suas obras
literárias refere-se à identidade daqueles e com aqueles que sofrem o
racismo, assumindo publicamente as conexões com a exclusão ou com o
imaginário afro-descendente. Estaríamos assim mais próximos das questões
que a literatura afro-brasileira suscita.
Moema
Parente Augel afirma que a representação da África na literatura
brasileira representa a origem e também o sonho de evasão que Cuti evoca
em seu poema “Vento: Vem da África/ soprando a gente por todos os poros do mundo/ Vem de lá/ Vem do chão/ do vulcão/ na maré/ esse vento de fé” (CUTI, 1982, p.46). Para
Augel, não é possível que se pense nação, identidade e pertencimento,
sem que se pense em África. E isso inclui todos os brasileiros, não só
os afro-descendentes.
E Machado de Assis com isso?
Machado
era mulato, neto de escravos. Órfão, foi criado por uma mulher também
mulata. Para sobreviver, Machado vendia na rua quitutes, que sua
madrasta preparava. Assim cresceu aquele que mais tarde se intitularia
de “um escritor caramujo”, ou seja, aquele que usou mais de dez
pseudônimos, que jogou com a ironia e com o riso, que são procedimentos
dissimuladores e não panfletários.
Segundo Nei Lopes, em Dicionário Escolar Afro-Brasileiro,
Machado de Assis estréia aos quinze anos na literatura pela mão do
também afro-brasileiro, o editor Paula Brito, começando uma carreira
duplamente promissora: a de jornalista e a de escritor. Machado nunca
teve um escravo, não era rico ou descendente da burguesia, mas um
funcionário que, pelo mérito de sua obra, convive de igual para igual
com a elite do império. Em crônicas, ele chega a relatar que no dia 13
de maio festejou a abolição nas ruas.
As
obras mais lidas de Machado de Assis certamente se utilizam de
estratégias que, segundo Eduardo de Assis Duarte, compõem “uma
literatura de brancos, uma literatura para os brancos” (DUARTE, 2008).
Literatura, na fala de Duarte, é uma noção que integra o leitor à obra. O
primeiro recenseamento feito no Brasil, por volta de 1876, aponta que
84% dos brasileiros eram analfabetos. A elite branca consumia seus
textos e, por isso, o tema afro-brasilidade teria surgido apenas nas
brechas do texto, de modo dissimulado em obras publicadas inicialmente em revistas femininas.
Machado, o autor de Pai contra mãe, escrevia, portanto, para um pequeno grupo de alfabetizados, explicando vez por outra como viviam outros grupos sociais, como a penúria
levava um homem a caçar escravos fugidos e por que a Roda dos inocentes
era uma solução para o filho que uma costureira e um rapaz sem
profissão não poderiam sustentar.
Harold
Bloom, pesquisador de Yale, reconheceu, ao ler obras de Machado de
Assis, que elas constituíam a produção do maior escritor
afro-descendente de todos os tempos e fariam parte de uma literatura
acima das questões do racismo. Harold Bloom elencou a obra de Machado de
Assis em Gênio - Os 100 Autores Mais Criativos da História da Literatura, ed. Objetiva, 2002. Em entrevista ao jornal Folha de São Paulo, Caderno Mais, 27 de janeiro de 2008, também disponível no site http://www1.folha.uol.com.br/fsp/mais/fs2701200808.htm, Harold Bloom conclui do que leu:
Eu
tive uma grande surpresa quando li o cubano Alejo Carpentier
(1904-1980). Pensei que ele fosse negro, porque questões de raça estão
de alguma forma colocadas, mesmo de modo sutil e às vezes inconsciente,
em "El Reino de Este Mundo" (1949). Já a literatura de Machado não traz
traço algum de raça. Então pensei que ele era branco e Carpentier,
negro. Curiosamente, ao final, descobri que se tratava do contrário.
Machado foi o maior escritor "afro" que conseguiu escrever na língua do
Novo Mundo sem trazer a questão da raça para seus textos. A
sensibilidade que teve para ver uma certa decadência do homem define sua
escrita. Não uma decadência do ponto de vista negativo, mas como um
dado posto. E isso está acima da questão racial. (BLOOM, 2008)
Mas
há muitos textos de Machado que são desconhecidos do público em geral
-brasileiro e estrangeiro; por exemplo: as crônicas que tratam das
condições de existência do negro. Elas foram recuperadas de jornais do
século XIX, guardados na Biblioteca Nacional e em outros acervos e
pesquisadas pelo autor do livro Machado de Assis afro-descendente. Nesse livro, Eduardo de Assis Duarte trata do envolvimento do cronista e escritor de Memórias Póstumas de Brás Cubas com a luta pelo fim da escravidão. Mesmo assunto de um dos capítulos do estudo de Raimundo Magalhães Júnior Machado de Assis Desconhecido, 1957.
Em
crônicas, Machado se utiliza de pseudônimos como Lélio, João das
Regras, Policarpo, Dr. Semana e outros. Esconder sua assinatura é uma
estratégia de proteção para seu cargo de funcionário público, já que ele
era homem de confiança do governo imperial. Isto em uma época em que
amigos do imperador foram demitidos por publicarem textos pró-abolição.
A crônica Duelo de Filantropia
(DUARTE, 2007, p. 27) que se encontra sem assinatura nas edições
Jackson e Nova Aguilar foi publicada pela primeira vez no Diário do Rio
de Janeiro em 1864. O texto é um bom exemplo de como tratar o tema da
escravidão. Dele extraímos o primeiro parágrafo para ilustrar:
Era
um leilão de escravos. Na fileira dos infelizes que estavam ali de
mistura com os móveis, havia uma pobre criancinha abrindo os olhos
espantados e ignorantes para todos. Todos foram atraídos pela tenra
idade e triste singeleza da pequena. Entre outros, notei um indivíduo
que, mais curioso que compadecido, conjeturava à meia voz o preço por
que se venderia aquele semovente. Travamos conversa e fizemos
conhecimento; quando ele soube que eu manejava a enxadinha com que
revolvo as terras do folhetim, deixou escapar dos lábios esta
exclamação:
-Ah!
(...) É para a liberdade! (ASSIS, in DUARTE, 2007, p. 27)
Por
causa da sutileza das obras mais conhecidas e das estratégias de
invisibilidade, o Movimento Negro, em 1930, avaliou o trabalho de
Machado como uma obra em que as questões do negro estão ausentes. Em
2007, contudo, a pesquisa de Duarte afirmou o contrário.
Em
outra crônica, sob o pseudônimo de Dr. Semana, Machado escreve sobre a
prostituição exercida pelas mulheres escravizadas, o que era comum no
período colonial e durante o século XIX. Fato este, que fundamentou o
mito do erotismo exagerado de mulheres negras e mulatas. A crônica
apresenta o apreço de Machado pelos pró-abolicionistas mesmo antes da
campanha se fortalecer. Ele sublinha a louvável atitude do Sr. Dr.
Miguel Tavares “contra as mulheres que forçam escravas à prostituição” e
“seu principal objetivo era a punição dos traficantes. Um bravo ao
nosso denodado colega” (MACHADO, in DUARTE, 2007, p. 30).
Outra
característica da obra de Machado é a de não defender o racismo por
meio da estereotipação do negro. Ao contrário, sua obra denuncia o
racismo ao contar sobre as relações assimétricas entre escravos e
senhores e as injustiças praticadas contra os negros. A conclusão de
Duarte é que a obra de Machado mostra o negro como qualquer outro ser
humano:
com
altos e baixos, com verdades e com mentiras, com honestidade e com
desonestidade, com ingenuidade e com esperteza, ou seja, alguém que é
humano como qualquer outro ser humano, não é nem mais nem menos. Este é o
ponto e já aí há uma distância enorme entre Machado de Assis e vários
outros escritores da época que viam o negro como um ser humano de
segunda categoria. Este é um ponto. Acho que ele dá um tratamento digno
ao negro, ao escravo e vê inclusive em determinados gestos de rebeldia,
ou de astúcia, do próprio escravo, como gestos de legítima defesa. Eu
creio que neste ponto ele se destaca, porque é diferente de muitos, que
inclusive faziam a campanha abolicionista, como Aloísio de Azevedo que,
no seu livro “O cortiço”, coloca a negra de uma forma completamente
estereotipada, que via o branco como uma raça superior. (idem)
Machado,
por ter sido um excelente escritor, utilizou técnicas variadas e
gêneros diversos para tratar da igualdade entre os brasileiros e dos
abusos contra os afro-descendentes. Machado não elaborou personagens
negras através de estereótipos. Foi um autor afro-descendente que
escreveu contra o sistema escravista através de artigos, cuja
visibilidade era mascarada por pseudônimos ou pelo anonimato. Tais
textos, felizmente, estão sendo disponibilizados para o público, pois
pesquisas recentes revelam o Machado de Assis escondido como um
caramujo. A obra de Machado de Assis, portanto, é considerada
afro-brasileira.
_______________________________________[i]
Roger Bastide (1898-1974) destaca-se como um dos integrantes da "missão
francesa" trazida na época da fundação da Universidade de São Paulo ao
estudar o Brasil por 16 anos.
[ii]
Inicialmente com o título de Cadernos Negros, hoje a publicação
denomina-se Cadernos negros: contos afro-brasileiros e Cadernos Negros:
poemas afro-brasileiros.
[iii]
Nazareth sugere três antologias para serem pesquisadas com pressupostos
de simulação de oralidade na escrita: A antologia AXÉ, antologia
contemporânea de poesia negra brasileira, org. Paulo Colina, 1982.
Constam poemas de Adão Ventura (falecido em 2004), de Minas Gerais;
Arnaldo Xavier (também falecido em 2004), da Paraíba; Oliveira Martins,
do Rio Grande do Sul; Éle Semog e José Carlos Limeira, Rio de Janeiro;
Abelardo Rodrigues, Luiz Silva, (Cuti), Geni Mariano Guimarães, José
Alberto, Maria da Paixão, Mirian Alves, Oswaldo de Camargo, Paulo Colina
e Ruth Souza, de São Paulo.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
AUGEL, Moema Parente. Geografias imaginárias: África na poesia afro-brasileira contemporânea.
(no prelo). Cedido pela autora via e-mail em 04/05/2008. (Outras
informações sobre o assunto em AUGEL, Moema. A imagem da África na
poesia afro-brasileira contemporânea. Afro-Ásia. Salvador: Centro de Estudos Afro-Orientais (CEAO), Universidade Federal da Bahia (UFBa), 1997, nº 19/20, p. 183-199.)
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