O ciclo da vida
Tendo em mente os princípios cosmológicos sintetizados no item anterior, podemos começar a perceber como alguns processos vitais são elaborados em termos cosmológicos e como se relacionam a práticas rituais associadas ao ciclo de vida.
A digestão, evacuação, decomposição e morte envolvem um fluxo passivo do alto para o baixo, de rio acima para rio abaixo, do Oeste para o Leste. A vida em si é um movimento, às vezes uma luta, de acordo com esse fluxo: as plantas crescem em direção ao sol e as pessoas devem crescer para cima enquanto amadurecem. O Sol, ou Yeba Hakü (na língua barasana), o "Pai do Universo", fonte de luz e da vida, move-se constantemente contra a corrente, subindo os rios da terra do Leste para o Oeste durante o dia e subindo o rio do "mundo inferior" durante a noite, para aparecer de novo no Leste. O ancestral-Anaconda que trouxe a humanidade para o mundo também viajou como o Sol, no sentido Leste para o Oeste, parando quando alcançou o meio do universo. Esse mesmo movimento de Leste a Oeste foi também uma ascensão da água para a terra.
O ancestal-Anaconda, um ser aquático, é o próprio rio no qual ele viajou, e os seres em seu interior somente assumiram a forma humana quando emergiram na terra firme; antes disso, eram "gente peixe", espíritos na forma de ornamentos de penas. Os animais são chamados wai-bükürã, "peixes maduros"; e, logicamente, entre eles estão os seres humanos, seres que estão a meio-caminho entre os "peixes-espíritos" que eram antes e os "espíritos-pássaros" que se tornarão.
A história do ancestral-Anaconda é uma narrativa sagrada sobre os primórdios e, provavelmente, uma versão das migrações históricas dos povos Tukano. Também pode ser entendida como uma história sobre a ecologia, sobre as migrações anuais rio acima de peixes amazônicos que vêm desovar nas cabeceiras; e uma história sobre a reprodução humana, que também envolve uma penetração ascendente, no sentido "Leste-Oeste", rumo a uma "porta da água", num fluxo ascendente de sêmen, e uma passagem do mundo aquático do ventre para o mundo seco da existência humana na terra. Não é de se admirar então que "nascer" é hoe-hea (em barasana), que significa "atravessar rumo a um nível mais alto". Mas o nascimento também envolve um movimento de descida pelo canal do corpo feminino - cosmologicamente um movimento do Oeste para o Leste e, em termos sociais, um movimento da mãe para o pai ou das mulheres para os homens.
Para entender esses movimentos, porém, é preciso começar pela morte. Alguns índios do Uaupés, os Kubeo em particular, encenam rituais elaborados de luto em que dançarinos com máscaras pintadas e feitas de casca de árvore se tornam peixes, animais, e outros seres da floresta para dar boas-vindas à alma do morto no mundo dos espíritos. Mas o enterro tukano em si é um evento simples: a cova é o chão da maloca e o caixão uma canoa cortada ao meio. Esse sepultamento simples é o prelúdio para um futuro nascimento.
Os tukano compartilham uma noção de reencarnação segundo a qual, quando uma pessoa morre, um aspecto de sua alma volta para a "casa de transformação", local de origem do grupo. Depois, a alma volta ao mundo dos vivos encarnada em um recém-nascido que recebe o seu nome. As pessoas recebem o nome de um parente recentemente falecido do lado paterno, o avô paterno para um menino ou a avó paterna para uma menina. Cada grupo possui um conjunto limitado de nomes pessoais que vão sendo retransmitidos a cada geração. O aspecto visível dessas "almas-nomes" são os cocares de penas usados pelos dançarinos, que também são enterrados com os mortos. O rio do "mundo inferior" é descrito como repleto de ornamentos, assim como na história de origem os espíritos dentro da canoa-Anaconda tiveram a forma de ornamentos de dança.
Sepultadas em canoas, as almas dos mortos caem para o rio do "mundo inferior". De lá, são levadas pela correnteza do rio subterrâneo para o Oeste e às regiões rio acima deste mundo. As mulheres não dão à luz na maloca, mas numa roça no interior da floresta, rio acima e atrás da casa - também ao Oeste. O recém-nascido é primeiramente lavado no rio e depois levado para dentro da maloca pela porta traseira, a "porta das mulheres". Confinado dentro da casa por cerca de uma semana com seu pai e mãe, ele é então banhado de novo no rio e recebe um nome. Assim, em termos cosmológicos, os bebês de fato vêm das mulheres, da água, do Oeste.
Barasana
Índia Tuyuka com seu filho em um evento cultural em São Paulo. Foto: Miguel Chaves, 1998. |
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