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quinta-feira, 5 de setembro de 2013

AVALIAÇÃO DO PROGRAMA “A COR DA CULTURA” Valter Roberto Silvério1

Como foi a avaliação do projeto na sua 2ª etapa ano 2012

O programa “A Cor da Cultura”2 surgiu em 2004 enquanto um projeto social com o objetivo de valorizar o patrimônio cultural afro-brasileiro e reconhecer a contribuição da população negra à sociedade brasileira dando visibilidade a sua história não associada à escravidão.
De forma inédita e inovadora instituições públicas e privadas se reuniam para desenvolver um conjunto de produtos destinados à ação pedagógica3, em escolas públicas, relativa à implementação da lei 9394/1996, de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) alterada pela lei 10.639/2003.
A lei 10.639/2003 deu origem à resolução do Conselho Nacional de Educação 001/2004 e o parecer 003/2004 que estabelecem as diretrizes curriculares nacionais para a educação das relações étnico-raciais e para o ensino de história e cultura afro-brasileira e africana.
A distinção presente no parecer entre educação para relações étnico-raciais e o ensino de história e cultura afro-brasileira e africana não é retórica e permite pensar duas dimensões associadas à implementação da lei 10.639/2003: a política educacional e a curricular.
Em relação à política educacional o que está em jogo é a necessidade de desracializar as instituições escolares, combatendo toda e qualquer prática discriminatória e racista, enfrentando-as cotidianamente com medidas que envolvam toda a comunidade escolar na identificação de suas causas e no tratamento de seus efeitos.
1 Professor Associado do Departamento e do Programa de Pós-Graduação de Sociologia da Universidade Federal de São Carlos – UFSCar.
2 O kit do programa é composto por 03 cadernos para professores com dicas de utilização do conteúdo; Glossário – Memórias das palavras; CD Gonguê – A herança africana que construiu a música brasileira; 01 jogo educativo – Heróis de todo mundo. 08 fitas VHS - Nas fitas estão reunidos episódios produzidos por cinco séries do Canal Futura especialmente para o projeto A Cor da Cultura. São eles: Livros Animados (3 fitas, com 10 episódios), Nota 10 (1 fita, com 5 episódios), Mojubá (2 fitas, com 7 episódios), Ação (1 fita, com 4 episódios), Heróis de Todo Mundo (1 fita, com 30 heróis). Há uma versão em CD room.
3 O projeto “A Cor da Cultura” é uma parceria entre o Canal Futura, o CIDAN – Centro de Informação e Documentação do Artista Negro, a SEPPIR – Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial, a TV Globo, a TV Educativa e a Petrobras, visando unir esforços para a valorização e preservação do patrimônio cultural afro-brasileiro.
De acordo com o Plano de Desenvolvimento da Educação (PDE), a escola enquanto um espaço onde se realiza o processo de socialização e individuação da pessoa está localizada em um território que enfeixa um conjunto de processos econômicos, políticos, culturais estruturados com base em relações entre indivíduos hierarquizados socialmente.
O espaço escolar, para além de sua materialidade física, representada pelo prédio da escola, pode nos permitir compreender a história dos sujeitos que nele se encontram a partir dos processos objetivos, isto é, das transformações provocadas pelo desenvolvimento de um dado território, e, também, subjetivo no conteúdo legado por essas transformações. Conteúdo esse que influência a configuração dos sujeitos coletivos que ganham expressão em diferentes dimensões da vida de cada pessoa pertencente a um dado grupo que partilha aquele espaço.
Assim, as crianças, jovens e adultos que freqüentam a escola não podem ser encaradas como destituídas de história, isto é, antes de serem consideradas futuras/os cidadãs/cidadãos ou indivíduos em processo de autonomização, são pessoas que pertencem a um grupo particular portador de uma experiência social, política, econômica e cultural que deve ser respeitada e analisada a luz da história passada e dos anseios futuros da sociedade.
MARCO CONCEITUAL DO PROGRAMA “A COR DA CULTURA”
É a partir dessa experiência social, não dada a conhecer de forma sistemática, que o programa “A Cor da Cultura” foi formulado, isto é, para contribuir com a dimensão do saber e do fazer da população afro-descendente no Brasil. A qual poderá contribuir tanto para uma melhor compreensão da forma como a cultura africana se faz presente no Brasil quanto para ampliar os horizontes dos conteúdos curriculares do ensino brasileiro.
Criar materiais audiovisuais sobre história e cultura afro-brasileiras; valorizar iniciativas de inclusão, dando visibilidade a ações afirmativas já promovidas pela sociedade; contribuir para a criação de práticas pedagógicas inclusivas são os objetivos maiores que compõem o projeto “A Cor da Cultura”
A experiência da população negra na história recente do país, em especial àquela que vivenciamos após a abertura política de meados de 1980, tem sido marcada por reivindicações de movimentos sociais denominados pela literatura especializada, nacional e internacional, de identitários. Tais movimentos insistem em, por um lado, denunciar as desvantagens sociais de indivíduos negros, indígenas e mulheres, quando comparados aos homens brancos, no acesso aos bens produzidos pela sociedade em geral. Por outro lado, os movimentos que agregam aqueles indivíduos (negros, mulheres e indígenas) têm se apoiado em séries de dados estatísticos, inclusive de agências governamentais (IBGE, IPEA e INEP), para exigirem a sua inclusão social com igualdade de oportunidades e de resultados.
Desta forma, a educação escolar formal surge como uma arena de lutas sobre o conteúdo das representações que os diferentes movimentos imaginam interferirem no tratamento social adequado e igualitário de negros, mulheres e indígenas.
Em relação ao movimento negro esta arena de lutas, que é a educação escolar formal, representa tanto a possibilidade de manutenção do apagamento da contribuição dos povos africanos para construção da nação brasileira, como de fato tem ocorrido até o presente momento, quanto o desafio de uma efetiva mudança nos parâmetros do sistema de ensino e na política educacional brasileira na medida em que a história dos povos considerados “sem história” passe a ser contada.
Assim, os episódios do programa “A Cor da Cultura” respondem a uma reivindicação do movimento negro, do passado e do presente, e, ao mesmo tempo, a uma necessidade de reparação de uma omissão histórica que tem negado aos afro-descendentes sua condição de sujeitos históricos ativos com participação em todo o processo sócio-econômico, político e cultural que tem modelado a nação brasileira.
O projeto prevê uma série de ações culturais e educativas com foco na produção e veiculação de programas sobre o histórico de contribuição da população negra à sociedade brasileira. Esta produção, transformada em material didático, aplicado e distribuído às escolas públicas, deverá ampliar o conhecimento e a compreensão sobre a história dos afro-descendentes e história da África e, assim, contribuir para os objetivos previstos na Lei 10.639 – que trata especificamente sobre este assunto – venham a ser satisfeitos.
De fato, nos últimos cinco anos, ao lado da ampliação do esforço para avançar rumo à universalização da educação básica – e até como condição necessária e indispensável para a realização desse objetivo prioritário da política educacional nacional –, o MEC ampliou e fortaleceu um conjunto de políticas voltadas especificamente para os grupos sociais historicamente desfavorecidos, que não se beneficiaram da expansão do sistema educacional verificada nas últimas três décadas. Entre outros grupos fazem parte do público-alvo preferencial das políticas de inclusão e diversidade os afro-descendentes e quilombolas.
Ao definir Alfabetização e Inclusão como um dos quatro eixos estratégicos da política educacional – ao qual se somam Qualidade da Educação Básica/Implantação do Fundeb4, Expansão da Educação Profissional e Tecnológica e Reforma da Educação Superior –, o Governo Lula reafirmou o seu compromisso de garantir o direito à educação para os milhões de brasileiros que não tiveram oportunidade de se escolarizar, constituindo-se hoje as principais vítimas da exclusão social da chamada sociedade do conhecimento. Para dar efetividade a essa prioridade, o MEC promoveu, em 2004, uma profunda reorientação das suas políticas. A própria criação da SECAD representou um passo importante na operacionalização desta nova visão estratégica. A simples colocação da palavra diversidade no âmbito de uma secretaria do MEC e, também, sua inclusão em vários programas do Ministério rompeu com um silêncio de 70 anos, em 2004, uma vez que desde sua criação o MEC nunca havia dado a devida importância para a composição étnico-racial da população brasileira.
Para tanto, a diversidade étnico racial deve ser uma dimensão constitutiva do currículo, do planejamento das ações, das relações estabelecidas na escola entre os próprios alunos(as) e entre estes e os(as) professores(as). Insistindo no óbvio: estamos em uma época de mutações e a qualidade social da educação não pode ser definida genericamente, é importante reconhecer que é tempo de expandir a capacidade do coletivo das escolas de pensar uma nova construção social, expressão de culturas
4 Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação, a ser instituído em substituição do Fundef. Uma vez aprovado pelo Congresso Nacional, este mecanismo passará a financiar os três níveis da Educação Básica: Educação Infantil, Ensino Fundamental e Ensino Médio. A implantação do Fundeb terá grande impacto sobre três políticas sob responsabilidade da SECAD: Educação de Jovens e Adultos, Educação Escolar Indígena e Educação do Campo. Além de incluir essas modalidades, o novo sistema de financiamento deverá garantir valores per capita diferenciados, de acordo com as suas especificidades.
compartilhadas, que tenha na noção de igualdade, uma referência cotidiana, no presente, e não meramente retórica.
A partir da lei 10639-2003, por um lado, a demanda por formação de professores e gestores e, por outro, a produção de materiais didáticos para a educação das relações étnico-raciais, com foco na história e cultura afro-descendente e africana, é crescente e exige um grande esforço institucional para sua efetivação enquanto uma política efetiva do ministério e de seus parceiros. Assim, a proposta do Canal Futura deve ser analisada não em relação a sua potencialidade que é inquestionável, mas sim em seus limites.
QUAIS SÃO OS LIMITES DOS PRODUTOS DO PROJETO “A COR DA CULTURA” DIANTE DOS DESAFIOS PROPOSTOS PELA LEI 10.639-2003?
A educação, ao ser entendida como um direito humano fundamental, implica que os Estados têm a obrigação de garanti-la mediante sua promoção, proteção e respeito à diversidade de experiências e culturas, assegurando à população a igualdade de oportunidades para o acesso e a apropriação do conhecimento. Tais elementos orientam os princípios de uma educação de qualidade para todos ou seja, equidade, pertinência, relevância, eficácia e eficiência (OREALC, 2007).
Como resultado do workshop realizado pela UNESCO5 e MEC/Secad entre os dias 06 e 07 de novembro de 2007 se observou, nos grupos de trabalho e nas plenárias, alguns temas recorrentes os quais sugerem três ordens de problemas na institucionalização da Lei 10.639/2003. O primeiro se refere às precárias condições institucionais da SECAD para que o Ministério da Educação assuma um papel ativo na relação com os diversos atores envolvidos na implementação da Lei. O segundo se
5 Sobre a base da proposta da Conferência de Ministros Aliados da Educação (CAME), realiza-se em Londres, de 1º a 16 de novembro de 1945, justamente no fim da guerra, uma Conferência das Nações Unidas para o estabelecimento de uma organização educacional e cultural (ECO/CONF). Nesta Conferência se reúnem representantes de uns 40 Países. Com o impulso da França e do Reino Unido, dois países muito afetados pelo conflito, os delegados decidem criar uma organização destinada a instituir uma verdadeira cultura de paz. Dentro de seu espírito, esta nova organização deve estabelecer a "solidariedade intelectual e moral da humanidade" e, desta maneira, impedir que se desencadeie uma nova guerra mundial. No final da conferência, 37 destes Países assinam a Constituição que marca o nascimento da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO). A Constituição entra em vigor a partir de 1946 e é ratificada por 20 Países: Arábia Saudita, Austrália, Brasil, Canadá, Tchecoslováquia, China, Dinamarca, Egito, Estados Unidos da América, França, Grécia, Índia, Líbano, México, Noruega, Nova Zelândia, República Dominicana, Reino Unido, África do Sul e Turquia. A primeira reunião da Conferência Geral se realiza em Paris, no período de 19 de novembro a 10 de dezembro de 1946, em que participam representantes de 30 governos com direito a voto.
refere à baixa freqüência e ou ausência de inter-relações entre os diferentes entes federativos, sendo este um problema estrutural da gestão de políticas educacionais, que dificulta imensamente o atendimento às demandas de institucionalização da Lei, principalmente considerando a inexistência de dotação orçamentária específica. E o terceiro, envolve a complexidade de intervir simultaneamente na formação inicial e continuada de professores e gestores, sem contar com programas de produção e distribuição de materiais didáticos e sem uma orientação objetiva no interior do Programa Nacional do Livro Didático (PNLD) da importância de incorporar em seus conteúdos a temática das Relações Raciais de acordo com a Resolução CNE/CP 1/2004 do Conselho Nacional de Educação (CNE), que estabelece as diretrizes para esse fim.
O programa “A Cor da Cultura” tem como preocupação a terceira ordem de problema suscitada pelos participantes do workshop, a qual demanda ao mesmo tempo, ações estruturais como, por exemplo, a necessidade de mudanças na matriz curricular dos cursos de graduação, em especial os cursos que formam professores e, também, ações cotidianas no chão da escola.
Em relação às ações cotidianas o projeto “A Cor da Cultura” tem sido muito bem sucedido como demonstram os seguintes dados de uma avaliação6:
a) O Programa, seus desdobramentos e contribuições
 O Programa atende, expressivamente, ao Ensino Fundamental (cerca de 70%)
 O Programa foi expandido para outras escolas (segundo 1/3 dos gestores), por iniciativa da Secretaria, especialmente no RS e na BA;
 A Secretaria definiu políticas ou novos projetos/ações, a partir do A Cor da Cultura, segundo 54,3% dos gestores.
b) Mudanças percebidas após a implementação do Programa
 Alunos (79%) e professores (85,3%) estão mais sensíveis quanto à necessidade de eliminação de práticas discriminatórias;
 A maioria dos professores das escolas prioriza a discussão dos temas (75,6%) e tem facilidade para articulá-los aos conteúdos de suas áreas e disciplinas (59,5%).
c) Conclusões
6 A avaliação foi realizada pela INNOVA Assessoria e Pesquisa entre 26/11 a 07/12/2007.
Destacam-se:
 O Programa configura-se, hoje, como a iniciativa mais estruturada e sistemática em torno da valorização da cultura africana e afro-brasileira, ajudando a reduzir o “fenômeno da invisibilidade” nas escolas participantes;
 Houve aumento da sensibilidade de professores e alunos contra práticas discriminatórias;
 O Programa começou a criar raízes em boa parte das escolas (mediante a revisão de propostas curriculares, a discussão do projeto político-pedagógico ou criação de grupos de estudo em torno dos temas);
 Limites e desafios: o baixo investimento financeiro das SME; a fluidez ou inexistência de acompanhamento, pelos órgãos municipais; a participação restrita de outros atores no planejamento das ações (universidades, ONGs e outros grupos culturais e religiosos etc.).
O DESAFIO DE TRANSVERSALIZAR A QUESTÃO ÉTNICO-RACIAL: UM ESBOÇO PROPOSITIVO
O chão da escola é o espaço das interações sócio-educacionais concretas, isto é, mediadas por toda sorte de preconceitos, discriminações, racismo e desigualdades sociais existentes na sociedade mais ampla. Assim, as relações étnico-raciais existentes no país têm um espaço privilegiado para a sua reprodução. Ocorre que é, também, nesse espaço que elas podem ser discutidas, compreendidas e equacionadas de modo a permitir novas formas de interação social entre os freqüentadores do espaço escolar. As tensões decorrentes de perspectivas distintas que estão presentes no espaço da escola em última análise determinam os limites de toda e qualquer proposta de mudança.
O programa responde de forma satisfatória ao processo de sensibilização em relação à necessidade do tratamento da questão étnico-racial no cotidiano escolar para o ensino fundamental da educação básica. No entanto, ele cria também um conjunto de expectativas: no tocante à continuidade de investimentos no processo de formação de professores na área temática objeto do programa; em relação à cobertura de um número muito maior de escolas; em relação ao tratamento de temáticas mais complexas como, por exemplo, a religiosidade de matriz africana, as africanidades a diversidade no seio da própria população negra; o aprofundamento de conteúdos e ao atendimento do terceiro ciclo da educação básica (ensino médio) e outros níveis e modalidades de ensino e em relação a que tipo de acompanhamento o Canal Futura pode fazer em relação às necessidades de todos os envolvidos após o contato com o material.
CONHECER E SOCIALIZAR
Para além do processo de sensibilização, que sem dúvidas é um momento fundamental de reflexão sobre a necessidade e a forma de como nós conhecemos o mundo em suas diferentes perspectivas e dimensões, adquirir consciência de que existem várias maneiras de operacionalizar e divulgar o conhecimento é o passo adiante no processo de reconhecimento da diversidade cultural. Esse tipo de discernimento é, talvez, a tarefa mais complexa do trabalho de orientação para aquisição de conhecimento na relação entre os professores e os alunos.
Quando se trata do debate sobre a diversidade cultural e seus desdobramentos nas questões das relações sociais entre brancos e não-brancos é possível observar, com base na trajetória do pensamento e da ação da UNESCO sobre a cultura e a diversidade, as mudanças de percurso e no tratamento dessas dimensões da vida social. O tema da diversidade cultural, na chave dos conflitos étnico-raciais, está na raiz da própria criação daquela agência internacional e tem permeado seu pensamento e ações desde o seu surgimento.
O PÓS-GUERRA, A DESINTEGRAÇÃO DOS IMPÉRIOS COLONIAIS E OS MOVIMENTOS NACIONALISTA 7
A UNESCO apostou na crença de que elucidar a contribuição dos diversos povos para a construção da civilização seria um meio de favorecer a compreensão sobre a origem dos conflitos, do preconceito, da discriminação e da segregação raciais. Ou seja, a UNESCO apostou na idéia de que o conhecimento levaria à compreensão e esta seria a base das condições para a Paz. Iniciou então um ambicioso trabalho de pesquisa histórica, chamado História do Desenvolvimento Científico da Humanidade, que viria a ser escrita, durante vários anos, por aqueles que eram identificados como sendo os dois grandes entes sócio-políticos e culturais em que se dividia o Mundo: – o Oriente e o Ocidente.
7 Esta parte do texto de avaliação/proposição foi fortemente inspirada nas contribuições do representante da UNESCO no Brasil Vincent Defourny.
Nesse momento, as idéias de Pluralismo, Diversidade e Interculturalidade, embora presentes, diziam respeito às relações entre países, ou seja, cada Estado-Nação era tido como uma entidade coesa e unitária sob o ponto de vista da Diversidade.
CULTURA, POLÍTICA, DESENVOLVIMENTO E DIREITOS HUMANOS
Como nos lembrou Lévi-Strauss8, em conferência proferida em 2005 por ocasião do sexagésimo aniversário da UNESCO a abordagem da Cultura (veja citação abaixo), nesse período, estava ainda muito ancorada na idéia de produção artística e de conhecimento histórico.
Como decorrência, a Diversidade era tratada exclusivamente como fonte de riqueza, como o “tesouro comum da Cultura”. À Educação, e não à Cultura, era atribuído papel preponderante na luta por banir o mito da superioridade racial.
8 “Desde os seus primórdios até a primeira metade do século XX, a reflexão etnológica consagrou-se, em ampla medida, a descobrir quais seriam os meios para conciliar a unidade postulada do seu objeto com a diversidade, assim como, a incompatibilidade das suas particulares manifestações. Foi imprescindível a este efeito que a noção de civilização, a conotar um conjunto de aptidões gerais, universais e transmissíveis, cedesse o seu posto àquela de cultura, tomada em nova acepção, pois que, neste contexto, ela denota prioritariamente estilos de vida particulares, não transmissíveis e apreensíveis sob a forma de produções concretas (técnicas, hábitos, costumes, instituições, credos), muito mais que a consideração de capacidades virtuais, e correspondente a valores observáveis, em lugar de verdades ou supostas verdades.
Ora, a noção de cultura impõe problemas correspondentes, no imediato e se ouso afirmar, àqueles relativos ao seu emprego, no singular e no plural. Se a cultura − no singular e, inclusive, eventualmente com inicial maiúscula − consistir em atributo distintivo da condição humana, quais traços incluiria ela e como definir-se-ia a sua natureza? Mas, se a cultura manifestar-se sob formas prodigiosamente diversas, a ilustrarem, cada qual ao seu modo, as milhares de sociedades existentes na Terra ou ancestrais, estas formas, seriam elas todas equivalentes ou seriam passíveis de julgamentos de valor, os quais, em caso afirmativo, repercutiriam inevitavelmente sobre a própria noção?
Superar a aparente antinomia entre a unicidade da condição humana e a inesgotável pluralidade da formas, mediante as quais, nós a apreendemos, tal é o objetivo essencial atribuído à Antropologia. Presente desde os primórdios no elenco de preocupações da UNESCO, a temática relativa a este objetivo tem igualmente adquirido crescente importância no seio da instituição.
O reconhecimento da diversidade cultural e a proteção das identidades culturais ameaçadas constituem o segundo capítulo desta missão da UNESCO, na qual a Antropologia também ocupa seu posto. A UNESCO concebeu-a, inicialmente sob o prisma do patrimônio mundial, em cuja manifestação desta diversidade se desvela no transcorrer dos tempos. Ela empreendeu esforços, mais recentemente e em suplemento, no sentido de igualmente abordá-la em perspectiva espacial, incluindo todas as suas modalidades pelo mundo espalhadas, bem como aquelas das quais subsistem vestígios. Trata-se aqui das tradições orais, dos conhecimentos relativos à natureza e ao mundo, das tradicionais capacidades adquiridas e próprias às diferentes profissões, bem como, antes e sobretudo, das línguas, o seu meio comum de expressão. Pois que, embora de modo imaterial mas certamente, cada língua constitui pela sua lógica interna um monumento tão precioso quanto as preciosas obras-primas da arquitetura, inscritas, pela UNESCO, no elenco do patrimônio mundial. Cada língua percebe e recorta o mundo à sua maneira, própria e específica. Por intermédio da sua estrutura, ela inaugura uma via de acesso original ao conhecimento deste último.” (tradução minha).
No entanto, já no final da década de 1940, a representação, no seio da UNESCO, de fortes tensões internacionais relacionadas ao fim do colonialismo, assim como de discussões sobre os direitos das minorias, vão deixando claro que, tanto as origens, quanto as possibilidades de mitigação de muitos desses conflitos se vinculavam à Cultura. Em paralelo, ganhava corpo a idéia de que existem caminhos próprios de cada povo - ou de cada cultura - para o Desenvolvimento, o que devia ser estimulado, desde que se tomassem precauções contra o isolamento excessivo.
A partir dos anos 1950, é crescente a conexão da Cultura não apenas com o Desenvolvimento, mas com a Política e com os Direitos Humanos.
O tema dos Direitos Culturais comparece pela primeira vez em um Informe do Diretor Geral da UNESCO em 1969, quando se decide pela realização de um estudo nesse campo. O Informe de 1977 aborda uma questão importante, evitada no pós-guerra, quando a prioridade absoluta da UNESCO era garantir a paz e o entendimento entre estados soberanos. Trata-se do reconhecimento da importância das diferenças culturais internas aos países.
Marca este período a busca do equilíbrio entre a afirmação das identidades e a ameaça de divisionismos e de reclusão. Uma série de conferências intergovernamentais regionais convergem para o enunciado otimista da Conferência Intergovernamental sobre Políticas Culturais para América Latina e Caribe, que defende que o Pluralismo pode ser a verdadeira essência da identidade cultural e que esta deve ser considerada como um fator de estabilização e não de divisão.
A evolução dessa trajetória conduziu à conexão entre Cultura e Democracia. A dificuldade de dar conseqüência prática aos conceitos formulados, levava a UNESCO a enfatizar, cada vez mais, a responsabilidade dos governos e a necessidade de políticas culturais no nível de cada país.
A sofisticada visão da Cultura que resultou da Conferência do México, em 1982, ou seja, a sua compreensão como uma faculdade universal e não apenas como um rígido conjunto de padrões, trouxe consigo as idéias de renovação, discernimento e escolha crítica, respondendo à ameaça de que o Pluralismo pudesse se tornar um baluarte contra as trocas interculturais.
Uma questão concreta – o apartheid – lança um foco sobre a relação entre Diversidade e Igualdade, ou seja, evidencia-se a conexão com os Direitos Humanos. No final da onda de descolonização, o Plano de Médio Prazo da UNESCO afirmava que o verdadeiro usufruto da condição de liberdade pelos povos depende de pré-requisitos que
vão além da sua nova condição legal e política, mas de fatores econômicos, sociais e culturais. O foco na democracia e na promoção de direitos econômicos, sociais e culturais demonstra, na prática, a relação entre Cultura e Política identificada em décadas anteriores.
O inicio da década de 1990 enfatiza a importância da cooperação cultural internacional, considerando a crescente interdependência entre cultura e economia, a crescente reafirmação de identidades e o desenvolvimento de sociedades cada vez mais multiculturais. Acentua-se a preocupação com os conflitos resultantes de sociedades fragmentadas e complexas, ou seja, multi-étnicas, multi-culturais e multi-religiosas. A ênfase recai novamente sobre as políticas públicas no nível dos países, que devem cuidar das relações entre comunidades internas e reforçar a coesão social.
A década seguinte, o cenário da Convenção de 2005 é o cenário da Globalização. Vista pelo lado da Cultura, a Globalização corresponderia à transmissão e à difusão, para além de fronteiras nacionais, de conhecimentos, ideologias, expressões artísticas, informação e estilos de vida. Não cabe ingenuamente condená-la ou defendê-la, mas buscar, incessantemente, visualizar seus contornos mutantes. É preciso agir para, de um lado, estender a todos o seu imenso potencial de expressão e inovação, e, do outro, reduzir assimetrias e defender as culturas mais vulneráveis do risco da completa marginalização ou supressão.
Sete convenções internacionais foram elaboradas pela UNESCO desde os anos 50 com o propósito de preservar os vários aspectos ligados à diversidade cultural, vistos aqui sob o ângulo do patrimônio e da criatividade contemporânea. Estes instrumentos constituem hoje a síntese da estratégia da UNESCO no que se refere à proteção e promoção da diversidade cultural, traduzidas pelos termos jurídicos do artigo 7º da Declaração Universal sobre a Diversidade Cultural: “Toda criação tem suas origens nas tradições culturais, porém se desenvolve plenamente em contato com outras. Essa é a razão pela qual o patrimônio, em todas suas formas, deve ser preservado, valorizado e transmitido às gerações futuras como testemunho da experiência e das aspirações humanas, a fim de nutrir a criatividade em toda sua diversidade e estabelecer um verdadeiro diálogo entre as culturas”.
Os instrumentos normativos criados pela UNESCO merecem ser citados individualmente:
- A Convenção sobre a Proteção e Promoção da Diversidade de Expressões Culturais (2005);
- A Convenção para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial (2003);
- A Convenção para a Proteção do Patrimônio Cultural Sub-Aquático (2001);
- A Convenção sobre a Proteção do Patrimônio Cultural e Natural da Humanidade (1972);
- A Convenção sobre a Proibição e Prevenção à Importação, Exportação e Transferência Ilícita de Propriedade Cultural (1970);
- A Convenção para a Proteção de Propriedade Cultural em caso de Conflito Armado (1954);
- A Convenção Universal sobre Copyright (1952);
- O Acordo sobre a Importação de Bens Educacionais, Científicos e Culturais (1976), também conhecido como Acordo de Florença.
Novos marcos político-pedagógicos
O tema da educação para a igualdade étnico-racial mereceu destaque na Constituição de 1988, no sentido não apenas de assegurar igualdade de condições para o acesso e permanência dos vários grupos étnicos no espaço escolar, mas, também em termos de redefinir o tratamento dispensado pelo sistema de ensino à pluralidade étnico-racial e cultural que caracteriza a sociedade brasileira.
Vale notar que desde 1994, o Ministério da Educação tem demonstrado uma preocupação crescente com as relações inter-étnicas. A Conferência Mundial sobre Educação para Todos, por exemplo, suscitou questionamentos significativos: A escola está trabalhando para o desenvolvimento da cidadania? Existe tratamento diferenciado na escola?
Uma série de diagnósticos responde a estas indagações, apontando a existência de tratamento desigual, para crianças de diferentes segmentos e de diferentes origens, contribuindo para os dramáticos indicadores de desigualdades entre crianças negras e brancas no sistema educacional.
Fúlvia Rosemberg revela que o espaço escolar é hostil às crianças não-brancas, e redefine a expressão “maior evasão das crianças negras da escola” por “expulsão das crianças negras do sistema escolar”.
RELAÇÃO ENTRE O PROGRAMA “A COR DA CULTURA” E O PLANO NACIONAL DE IMPLEMENTAÇÃO DA LEI 10.639/2003
O balanço nacional da implementação da lei 10.639/2003 revela que, apesar da riqueza das experiências desenvolvidas nos últimos anos, a maioria delas se enquadra como experiências isoladas não abrangendo a educação básica e a totalidade das redes de ensino, restringindo-se a projetos descontínuos e de pouca articulação com as políticas do campo da educação, tais como formação de professores, materiais e livros didáticos, o que indica baixa institucionalidade.
Em dezembro de 2007 o Ministério da Educação em resposta às proposições encaminhadas pelos participantes de um Workshop sobre a implementação da Lei 10.639/2003, realizado em parceria pelo MEC/SECAD e a representação da UNESCO no Brasil instituiu um Grupo de Trabalho para elaborar um Plano Nacional de Implementação das Diretrizes Curriculares para a Educação das Relações Étnico-Raciais. Este grupo é coordenado pela Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade e as Secretarias de Educação Básica, de Educação Técnica, de Ensino Superior e Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP) estão representadas por gestores (as) e/ou técnicos (as) os (as) quais sistematizaram e apresentaram as ações e programas desenvolvidos por essas secretarias após a publicação da Lei 10.639/2003. Participam também deste grupo representantes das seguintes instituições: Associação Brasileira de Pesquisadores Negros (ABPN); Associação Nacional de Pesquisa em Educação (ANPed); Ação Educativa; Centro de Estudos das Relações do Trabalho e Desigualdades (Ceert); Centro do Estudante Afro-brasileiro (Ceafro); Canal Futura; Conselho Nacional de Educação (CNE); Conselho Nacional de Secretários Estaduais de Educação (CONSED); Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR); Secretaria de Direitos Humanos (SEDH); União Nacional de Dirigentes Municipais de Educação (UNDIME); UNESCO e UNICEF.
Para garantir uma participação ampliada foi planejada a realização dos “Diálogos Regionais sobre a implementação da Lei 10.639/03”, que ocorreram em seis Unidades da Federação (UF), no período de abril a junho de 2008 e reuniram aproximadamente 720 participantes entre gestores de sistemas escolares, professores da educação básica e universitários, representantes dos movimentos sociais, representantes
de Conselhos Municipais e Estaduais de Educação, enfim os principais atores na implementação da Lei 10.639/2003.
O documento referência elaborado pelo Grupo de Trabalho Interministerial foi analisado, debatido, constituindo-se no principal instrumento para elaboração de uma Proposta de Plano Nacional de Implementação da Lei 10.639-2003 e os Diálogos Regionais a forma mais democrática de assegurar que a visão das diferentes regiões, sobre as dificuldades e necessidades existentes no processo de institucionalização das Diretrizes Curriculares Nacionais para Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana, estejam contempladas.
O desafio de construir o referido Plano Nacional foi estruturado em torno de seis eixos temáticos : fortalecimento do marco legal, política de formação para gestores e profissionais da educação, política de material didático e para-didático, gestão democrática e mecanismos de participação social, condições institucionais, avaliação e monitoramento. O MEC/SECAD e a UNESCO dando prosseguimento ao planejamento e a realização dos Diálogos Regionais participaram juntamente com outros parceiros que compõem o GT (ABPN, Ação Educativa, ANPEd, SEDH/CADARA, CEERT, CMIR, CNE, CONSED, SEPPIR, UNDIME, UNICEF). Estas oportunidades de compartilhar a percepção da realidade que precisamos mudar e de traçar metas e estratégias por meio de oficinas sobre cada eixo temático ampliando progressivamente o número de atores estratégicos comprometidos com a realização do Plano Nacional contribui para o alcance dos objetivos do plano que apresenta-se a seguir.
OBJETIVOS DO PLANO NACIONAL DE IMPLEMENTAÇÃO DA LEI 10.639/03
 Garantir a institucionalização da Lei 10.639-2003 no âmbito de todo o Ministério da Educação e nas gestões municipais e estaduais de educação, garantindo condições adequadas para seu pleno desenvolvimento como política de Estado.
 Fortalecer o papel promotor e indutor do MEC com relação à efetiva implementação das Diretrizes Curriculares Nacionais para a educação das relações étnico-raciais e o ensino de história e cultura afro-brasileira e africana em todo o país;
 Acelerar o ritmo de implementação da Lei 9394/96 (LDB), alterada pela Lei 10.639/03 em todo o território nacional de forma a cumprir o previsto na Resolução 01/2004 do Conselho Nacional de Educação.
A experiência e o potencial do Canal Futura permitem observar que uma das contribuições possíveis, em continuidade a primeira versão do programa “A Cor da Cultura”, seria a elaboração de materiais, especialmente midiáticos, para complementação da formação de professores de educação básica sobre, por exemplo, o desenvolvimento das concepções de diversidade cultural e suas implicações para o debate da pluralidade étnico-racial brasileira a partir da educação infantil; e, também, materiais didáticos destinados a complementação da formação dos alunos, da educação básica, desde a educação infantil, que demonstrem a importância de construir, por meio da compreensão das distintas práticas culturais, a noção de que somos pessoas com valor igual, mas indivíduos pertencentes a experiências culturais diferentes.
Como nos lembra Boaventura de Souza Santos: “Temos o direito de ser iguais quando a diferença nos inferioriza, temos o direito de ser diferentes quando a igualdade nos descaracteriza.”

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