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quarta-feira, 31 de julho de 2013

PROJETO A COR DA CULTURA 12ª REGIONAL DE ITABAIANA PB

 

 

 

Terra roxa e outras terras – Revista de Estudos Literários
Volume 17-A (dez. 2009) - ISSN 1678-2054
http://www.uel.br/pos/letras/terraroxa
A POESIA NEGRA NA LITERATURA AFRO-BRASILEIRA: EXERCÍCIOS DE DEFINIÇÃO E ALGUMAS POSSIBILIDADES DE INVESTIGAÇÃO
Álvaro Hattnher (UNESP/Ibilce)
hattnher@ibilce.unesp.br
RESUMO: Este trabalho procura estabelecer pontos para uma discussão das principais características da produção literária afro-brasileira, com especial atenção às proposições teóricas de Damasceno (1988) e Bernd (1988). Divergindo ligeiramente dessas autoras, propõe-se a noção de que a literatura negra é aquela escrita por autores negros, com a visão de mundo e a experiência de sujeitos históricos que se reconhecem e se afirmam como negros. Nesse sentido, a eficácia estética da literatura negra estaria diretamente relacionada às formas de percepção do mundo e aos valores de uma experiência negra.
PALAVRAS-CHAVE: literatura afro-brasileira, poesia negra, Diáspora, experiência
À certa altura de sua obra Dialética radical do Brasil negro, Clóvis Moura interpela, retoricamente, seus leitores:
Por que nós esmagamos e não consideramos a literatura negra e o seu código de linguagem como uma manifestação válida, já que estamos em um país pluricultural? Por que nós achamos que o monopólio do discurso cultural é uma forma de controle que deve ser exercido pelas elites as quais se autodenominam brancas, e, com isto, a palavra do negro, da forma como ele sabe e quer se expressar (...) não é considerada literatura? (Moura 1994: 186)
A legitimação da literatura afro-brasileira passa diretamente pela posição da crítica e historiografia literárias, por assim dizer, “oficiais”. Se tomarmos, por exemplo a História concisa da literatura brasileira, de Alfredo Bosi, poetas afrobrasileiros como Domingos Cadas Barbosa e Luís Gama recebem tratamento bastante superficial. Mesmo quando a obra de Bosi foi “revista e aumentada”, a partir de sua 32ª edição, o texto
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não sofreu aumento nem revisão quanto a esse aspecto. Se voltarmos nossa atenção para a produção literária afro-brasileira posterior à Semana de Arte Moderna, nenhum autor é citado. Pode-se objetar que a historiografia literária nacional sempre tem incluído Cruz e Sousa, mas quase não há menções a textos desse autor que o caracterizassem como afrobrasileiro, tais como os poemas “Escravocratas” ou “Emparedado”.
A crítica também pouco tem se voltado para o assunto. O primeiro trabalho de fôlego é A poesia afro-brasileira, de Roger Bastide, publicado em 1943, misto de análise antropológica e interpretação psicanalítica, onde o autor busca “conhecer e compreender a própria alma do negro ou do mulato, para averiguar o quanto de originalidade ou de inspiração lírica pode ser atribuído ao sangue africano que lhes corre nas veias, seja puro, seja misturado a sangue europeu” (Bastide 1983: 11).
Em 1959 é publicado O negro na literatura brasileira, obra de Raymond Sayers traduzida por Antonio Houaiss, que estuda o negro muito mais como tema do que como criador de literatura. Em seguida, um silêncio quase absoluto de trinta anos, que será quebrado pelos ensaios de David Brookshaw, Raça e cor na literatura brasileira, em 1983, e Zilá Bernd, Negritude e literatura na América Latina, em 1987. O ano de 1988, centenário da Abolição, marcou, entre outras coisas, um súbito interesse das editoras pela questão negra, em todos os seus aspectos. Nesse ano foram publicadas duas obras fundamentais para os estudos de literatura negra no Brasil: Poesia negra no Modernismo brasileiro, de Benedita Gouveia Damasceno, e Introdução à literatura negra, também de Zilá Bernd. Em relação ao ensaio de Damasceno, é curioso pensar como um trabalho interessante como esse, originalmente apresentado na Universidade de Brasília como dissertação de mestrado em 1980 (e, portanto, anterior ao estudo de Brookshaw), precisou esperar tanto tempo para ser publicado. Nesse caso, o oportunismo de sua publicação em 1988 apenas comprova os mecanismos de exclusão da literatura afro-brasileira, que atingem não só as suas expressões, mas também seus discursos críticos.
E a constituição desses discursos deve passar necessariamente pela discussão sobre a própria denominação “literatura negra brasileira” ou “literatura afro-brasileira”. No caso da literatura negra produzida no Brasil, a utilização reiterada e às vezes enfática do adjetivo negro/negra decorre de um momento histórico específico, no qual tal utilização é absolutamente necessária para promover uma inversão do valor negativo que a palavra “negro(a)”, adjetivo ou substantivo, tem para a sociedade brasileira, e para efetuar o resgate da trajetória histórica da população negra brasileira, da África às costas de nosso país, da senzala à favela, de escravizado a trabalhador explorado. Dessa forma, homens e mulheres negros (e escritoras e escritores negros) criam “valores sociais de sobrevivência ou auto-afirmação que lhe fornecem “os elementos ideológicos e sociopsicológicos aptos a se contraporem aos das classes dominantes e segmentos brancos racistas” (Moura 1988: 138).
A literatura negra se define, assim, na medida em que o(a) autor(a) negro(a) torna-se sujeito de seu próprio discurso. Deixa de ser personagem secundário, deixa de ser o “ele/ela” para ser protagonista, tornando-se o “eu” que tem a posse de suas
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falas. Mas a passagem do ser o “outro” na produção literária para um “eu” requer necessariamente a experiência histórica do ser negro.
É quanto a esse aspecto que, num primeiro momento, discordamos da posição de Bernd (1988: 2), para quem “o conceito de literatura negra não se atrela nem à cor da pele do autor nem apenas à temática por ele utilizada, mas emerge da própria evidência textual cuja consistência é dada pelo surgimento de um eu enunciador que se quer negro.”
Essa posição também é compartilhada por Benedita Damasceno, ao afirmar que a cor da pele do autor não é característica essencial da poesia negra brasileira. Mas, no que parece ser uma contradição dessa afirmação, Damasceno prossegue dizendo que “a cor (...) vai imprimir diferenciações entre a poesia negra escrita por negros e a escrita por brancos”, e que “a característica fundamental da poesia negra brasileira é a procura e/ou afirmação da identidade negra” (1988: 64-65).
Ora, é pouco provável que qualquer escritor “branco” manifeste sequer uma leve intenção de “afirmar sua identidade negra”, o que parece confirmar a noção de que a literatura negra é aquela escrita por autores negros, com a visão de mundo e a experiência de sujeitos históricos que se reconhecem e se afirmam como negros. Nesse sentido, a eficácia estética da literatura negra estaria diretamente relacionada às formas de percepção do mundo e aos valores de uma experiência negra, o que poderia ser um critério de valor para a produção literária negra em qualquer país que recebeu os negros da Diáspora. Não se pode, portanto, pensar a questão literária negra sem o respaldo da experiência histórica do negro.
Martha K. Cobb, em Harlem, Haiti, Havana: A Comparative Critical Study of Langston Hughes, Jacques Roumain, Nicolas Guillen (1978), aparentemente baseando-se nos escritos de Frantz Fanon, esquematiza a experiência negra em quatro etapas que, embora possam variar geográfica e temporalmente devido à Diáspora africana, podem servir como ponto de partida para uma discussão sobre a literatura nas Américas: (1) confrontação, o momento de encontro com uma sociedade estrangeira e geralmente hostil; (2) dualismo, onde o indivíduo encontra-se dividido entre os valores que lhe são próprios e aqueles da cultura dominante; (3) identidade, que se caracteriza por uma busca que inclui a pergunta “quem sou eu?”; e (4) libertação, que abarca tanto o nível espiritual quanto o político.
Essa experiência manifesta-se por meio de elementos de composição formal tais como escolhas de palavras, imagens e símbolos contidos na criação literária. A literatura se faz negra ao receber, por meio das formas de utilização da linguagem, toda a carga da experiência negra. A linguagem torna-se um meio que, ao mesmo tempo, estabelece e transforma essa experiência. Dessa forma, podemos afirmar que a literatura negra é, invariavelmente, a experiência negra transcrita. Tal experiência representa a base comum para a expressão imaginativa dos escritores negros, desenvolvendo-se não só em tom de exaltação da especificidade identitária como forma de inclusão histórico-social, mas também por meio do diapasão da denúncia e da resistência ao racismo.
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Pelo fato de constituir a maior parte da produção literária afro-brasileira, a poesia negra tem sido também seu gênero mais estudado. No caso brasileiro, a grande concentração de expressões literárias dentro do gênero poético está diretamente associada às formas de produção e divulgação das obras, geralmente edições do autor, vendidas em bares, portas de teatro e outros espaços públicos (mas raramente em livrarias).
Uma das primeiras tentativas de caracterização geral da produção poética negra brasileira foi feita por Cassiano Nunes, no ensaio “A poesia negra no Modernismo Brasileiro”, publicado no número 5 da revista Cultura em 1972. Nesse texto, Nunes sugere quatro características da produção poética negra brasileira: temas da vida da população negra; utilização de ritmos negros; utilização de um vocabulário “novo, rico e sugestivo”; expressão das vivências negras. No entanto, ainda que de certa relevância para qualquer pesquisador de literatura afro-brasileira, o texto de Nunes está repleto de visões estereotipadas do negro. O autor entende, por exemplo, que as “vivências negras” seriam “Alegria natural, despreocupação, prática de magia, sentimentos de religiosidade” (p. 119). Em outra passagem, Nunes afirma que o negro brasileiro “(...) desconhece o rancor, sentimento hoje alimentado Às vezes artificialmente, maliciosamente, pelo negro norte-americano. Ao lado das justas explosões de ira, também vicejam o vigarismo, a chantagem, a profissionalização da negritude” (Nunes 1972: 121).
Apesar das críticas que possam ser feitas a “Poesia negra no Modernismo brasileiro”, a tentativa de caracterização proposta por Nunes parece influenciar o estudo de Benedita Damasceno (1988). Porém, a autora de Poesia negra no Modernismo brasileiro afasta-se radicalmente das ideias de Nunes, buscando uma caracterização da criação literária negra brasileira com base não em estereótipos sobre o negro, mas na própria poesia de autores negros produzida no país, especialmente depois da segunda década do século XX. Para Damasceno, as características da poesia negra brasileira moderna são:
a) a procura e/ou afirmação da identidade negra; b) a ausência de um código de cor básico e obrigatório; c) o uso de temas da vida e da população negra resultante de vivências próprias ou de estudos e observações conscientes; d) a reprodução de ritmos negros; e) a introdução na poesia de termos e palavras do vocabulário afro-brasileiro; f) a transformação e a reabilitação semântica da linguagem. (DAMASCENO 1988: 69)
Segundo essa classificação, creio poder afirmar que o aspecto denominado “introdução na poesia de termos e palavras do vocabulário afro-brasileiro” está contido no que Damasceno chama de “transformação e a reabilitação semântica da linguagem”, uma vez que a utilização desse vocabulário, aqui entendido como o conjunto de empréstimos e decalques feitos a partir das línguas africanas, representa não só a “transformação semântica da linguagem”, mas também subversão do próprio código que rege a criação literária.
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Esse aspecto é um dos pontos de interseção das proposições de Damasceno (1988) com as de Zilá Bernd em Introdução à literatura negra (1988). Para Bernd, “(...) a utilização de uma linguagem marcada, tanto no nível do vocabulário quanto no dos símbolos, pelo empenho em resgatar uma memória negra esquecida, legitima uma escritura negra” (Bernd 1988: 22).
Essa mesma autora, por sua vez, estabelece quatro constantes discursivas ou “leis fundamentais” da poesia negra brasileira: 1. a emergência do eu enunciador, que revela “a determinação do poeta de desvencilhar-se do anonimato e da ‘invisibilidade’ que o relegou a sua condição de descendente de escravos ou ex-escravos (...)”; 2. a construção de uma epopéia negra, por meio da qual se procede ao resgate da história do negro, (re)contada em versão ‘não oficial’; 3. a reversão dos valores, buscando a afirmação da identidade negra pela inversão ideológica do universo semiótico ligado ao negro, num quase virar do avesso as isotopias do “negro burro”, “negro indolente” etc.; 4. uma nova ordem simbólica, que nada mais é do que uma consequência natural da “lei” anterior, na qual “(...) o poema se torna o espaço da destruição de uma simbologia estereotipada (...)” (Bernd 1988: 77, 89).
A emergência de um eu enunciador que inverte a estereotipia e os valores negativos do campo semântico da palavra “negro” ocorre, pela primeira vez em nossa literatura, na poesia de Luís Gama (1830-1882). Filho de um fidalgo baiano de origem portuguesa e de uma africana livre, Gama foi vendido pelo próprio pai aos dez anos de idade. Fugiu do cativeiro, tornou-se advogado e jornalista. Defendeu a causa abolicionista e foi acusado de acoitamento de escravos. Ao fazer a própria defesa durante seu julgamento, Gama afirmou: “Em verdade vos digo aqui, afrontando a lei, que todo escravo que assassina seu senhor pratica um ato de legítima defesa” (CARNEIRO, 1988: 318).
Parece difícil não perceber a existência do intertexto que se estabelece entre essa afirmação de Gama e o título da revista Legitime Defense, criada nos anos 30 do século XX, que ajudou a projetar de maneira mais nítida o perfil do movimento da Negritude. Essa possibilidade nos coloca diante de um virtual contato direto entre a negritude européia e a brasileira, confirmando a observação, feita por Oswaldo Camargo (1987: 44), de que, já no século XX, Luís Gama estaria dando início às rotas discursivas da negritude.
Em 1859 Gama teve editado em São Paulo o livro de poemas Primeiras trovas burlescas, onde se encontra o poema satírico “Quem sou eu?”, mais conhecido por “Bodarrada”. Nele já se encontra a afirmação do se negro, sem introjeção de preconceitos. Ao ser chamado de “bode”, termo pejorativo aplicado aos negros, o poeta responde:
Se negro sou, ou se sou bode,
Pouco importa. O que isto pode?
Bodes há de toda casta,
Pois que a espécie é muito vasta...
Há cinzentos, há rajados,
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Baios, pampas e malhados,
Bodes negros, bodes brancos,
E sejamos todos francos,
Uns plebeus e outros nobres,
Bodes ricos, bodes pobres,
Bodes sábios, importantes,
E também alguns tratantes...
Aqui nesta boa terra,
Marram todos, tudo berra (...)
(Camargo 1986
: 12-15)
O início do século XX marcou o surgimento de uma atuante imprensa negra no Brasil, e é por meio dela que se faz conhecido o nome do poeta Lino Guedes (1897-1951), considerado por Oswaldo de Camargo (1987: 75) como o primeiro poeta negro brasileiro que, no século XX, aceitou-se como negro.
Utilizando com frequência uma das figuras clássicas do folclore escravo, o “Pai João”, Guedes critica a geração posterior à Abolição (“os netos do Pai João”) e sua relação amistosa com o sistema sócio-econômico que, deixando de ser escravocrata, desenvolveu outras formas de dominação, como se pode ler em “O poema das mãos enegrecidas”:
O neto do Pai João,
Logo após a abolição,
Não pensou em se vingar
De quem tanto o escravizara
Daquele que o obrigara
Rudemente a trabalhar.
Despovoada a senzala,
Recebeu em sua sala,
Cavalheiresco e amigo,
E ao seu algoz penitente
Estende a mão sorridente:
Divirta-se aqui comigo!
E o neto de Pai João
Sofreu a desilusão
De ficar por toda a vida
— Como a pedir uma esmola
Para a mísera sacola, —
Com sua mão destendida ...
(Brookshaw 19
78: 32)
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O “neto do Pai João”, portanto, assume uma atitude de absoluta complacência em relação àqueles que, até 1888, mantinham-no agrilhoado. Embora não seja mais escravo, sua relação com o senhor não sofreu grandes alterações. Deve-se ressaltar que Guedes apresenta soluções conservadoras para a questão negra. A libertação do negro se faria pela adoção de valores da sociedade branca dominadora: a importância da célula familiar, a ideia do negro ordeiro e trabalhador incansável. Para Camargo (1987: 79), esse conservadorismo, de maneira inevitável, conduz Guedes “a um estreitamento e pauperismo no ato de escrever”.
No entanto, como já observamos de maneira mais detalhada em outra ocasião (Hattnher 2002), as ideias de Guedes e as do educador e líder negro norte-americano Booker T. Washington, contemporâneo do poeta, apresentam notável proximidade intertextual. Note-se que a principal obra de Washington, a autobiografia Up from the Slavery, publicada em 1901, recebeu uma edição brasileira, em tradução de Graciliano Ramos, publicada pela Companhia Editora Nacional em 1940.
De maneira quase oposta à de Guedes, inicia-se, em meados da década de 1940, a produção poética de Solano Trindade, provavelmente o mais importante poeta negro brasileiro. De fato, nos textos de Trindade encontram-se as principais características que delineariam a criação poética negra brasileira nos últimos cinquenta anos.
Para Bernd (1987:89), Trindade apresenta uma “obsessão” pela reconstituição histórica. No entanto, essa perspectiva coaduna-se não só com a ideia de “exposição” da história não-oficial promovida pela literatura negra, mas também revela-se coerente com a prática de inversão de signos negativos. Esse é o caso do poema “Navio negreiro”, de Solano Trindade, onde se lê:
Lá vem o navio negreiro
Cheio de melancolia
Lá vem o navio negreiro
Cheinho de poesia
Lá vem o navio negreiro
Com carga de resistência
Lá vem o navio negreiro
Cheinho de inteligência...
(CAMARGO 1986: 39)
Assim, recontar criticamente a história dos negros afigura-se como um dos procedimentos relevantes e recorrentes na literatura afro-brasileira. Nesse sentido, veja-se o poema “Sou negro”, também de Trindade:
Sou Negro
meus avós foram queimados
pelo sol da África
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minh’alma recebeu o batismo dos tambores
atabaques, gonguês e agogôs
Contaram-me que meus avós
vieram de Loanda
como mercadoria de baixo preço
plantaram cana pro senhor de engenho novo
e fundaram o primeiro Maracatu.
Depois meu avô brigou como um danado
nas terras de Zumbi
Era valente como quê
na capoeira ou na faca
escreveu não leu
o pau comeu
Não foi um pai João
humilde e manso
Mesmo vovó
não foi de brincadeira
na guerra dos Malés
ela se destacou
Na minh’alma ficou
o samba
o batuque
o bamboleio
e o desejo de libertação...
(T
rindade 1961: 42)
Nesse poema, a África é o ponto de partida de um processo histórico pontuado por símbolos de resistência: “Zumbi”, “Não foi um pai João”, “guerra dos Malés” etc. A tradição oral africana (“Contaram-me que meus avós vieram de Loanda”), elemento fundamental das culturas negras diaspóricas, é o grande responsável pelo resgate histórico no poema de Trindade. É por meio dele que o sujeito poético conscientiza-se da importância e do significado de sua própria história, reconhecendo sua passagem de objeto, “mercadoria de baixo preço”, a sujeito histórico.
A recorrência à revisão histórica como matéria poética torna-se um excelente meio de reelaborar visões de mundo distorcidas pelo status quo racista e impostas às comunidades diaspóricas, entre elas o Brasil. Veja-se, por exemplo, o poema “Para Domingos Jorge Velho”, de José Carlos Limeira, poeta ligado ao movimento literário Quilombhoje:
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DOMINGOS, bem que você poderia
Ter sido menos canalha!
Está certo que eras um filho da Coroa,
Súdito leal,
E os negros de Palmares ...
Ora, negro é negro.
Jorge meu caro
Entendo que estivesses vendo seu lado
Ouro, carne-seca, farinha, eram bem pagos
VELHO, o que me dói
É o fato de teres com alguns milhares
De porcos dizimado um sonho
Justo de Liberdade.
E ainda por cima voltaste com
Três mil orelhas de negros,
TRÊS MIL!
Ontem senti um tremendo nojo
Quando te vi como herói no livro
de História do meu filho.
Mas foi no fim muito bom
Porque veio de novo a vontade
De reescrever tudo
E agora sem heróis como você
Que seriam, no máximo, depois de revistos,
Assassinos, e bem baratos.
Atenciosamente
UM NEGRO
(Camargo 1987: 183)
Nesse texto, a preocupação fundamental é a reversão de imagens transmitidas e cristalizadas como positivas e o desmantelamento da figura dos chamados heróis que, historicamente, são agentes diretos ou indiretos de opressão.
É importante notar que o advento do início de uma maior visibilidade da criação literária afro-brasileira está diretamente relacionado ao próprio aumento de visibilidade da expressão política afro-brasileira, em especial a partir da fundação do Movimento Negro Unificado Contra a Discriminação Racial, que mais tarde se transformaria no MNU. No dia 7 de julho de 1978, ocorreu a primeira manifestação contra o racismo de que se tem conhecimento em São Paulo. O Movimento Negro Unificado (MNU) reuniu cinco mil pessoas, motivando imediatos paralelos com os acontecimentos nos Estados Unidos dez anos atrás, e com repercussão na imprensa mundial, mas pouca repercussão na imprensa brasileira. O surgimento do coletivo de escritores Quilombhoje se dá exatamente na esteira da ampliação da consciência da comunidade
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afro-brasileira. A partir de 1982, o Quilombhoje assume a publicação dos Cadernos Negros, publicações que, alternando prosa e poesia em seus volumes, têm apresentado aos leitores os “Novíssimos” escritores afrobrasileiros, para usar uma expressão de Oswaldo de Camargo (1987: 99). Como afirmam os organizadores do volume 19:
A proposta do Quilombhoje é incentivar a produção literária afro em todo o Brasil e mostrar ao leitor (independente de sua etnia ou credo) o que essa produção tem de melhor. (...) A poesia contida neste novo livro mostra-se ativa na desconstrução e reelaboração de paradigmas. Poesia guerreira, alada, entregue a vôos que nos levam ao âmago de questões universais. Poesia que emerge para se fazer ouvir. (1996: 10)
O reconhecimento e afirmação da existência de uma literatura afro-brasileira pode levar a diversos caminhos de pesquisa de grande relevância para tornar cada vez mais abrangentes não só as reflexões sobre a literatura brasileira, mas também sobre as relações de nossa literatura com outras literaturas nacionais.
Partindo de alguns denominadores comuns entre a criação poética negra nas Américas e em diversos países africanos, pode-se trilhar uma série de vias de investigação literária. Poderíamos estabelecer pontos de ligação entre o aproveitamento das adaptações fonéticas que ocorre tanto nos textos poéticos de Paul Lawrence Dunbar, afro-americano do século XIX, e nos textos de Lino Guedes e do próprio Solano Trindade. Por sua vez, esse aspecto pode nos levar a necessários estudos sobre a questão do emprego de formas dialetais na literatura de muitos escritores africanos. Poder-se ia realizar um estudo comparativo temático sobre as manifestações do signo “África” na poesia de diversos autores. Poderíamos, inclusive, tentar entender o porquê das sensíveis diferenças quantitativas entre as produções literárias negras, especialmente nos países historicamente ligados pela Diáspora (HATTNHER, 1999: 117-118).
Assim, parece-me de extrema relevância tentar estabelecer as vias de diálogo da atual produção literária afro-brasileira com toda a tradição literária do país, negra ou não. Podemos, por exemplo, tentar refletir sobre a construção de uma tradição literária negra brasileira apoiada sobre a ligação entre poesia e música pela análise dos aspectos formais da obra poética de Solano Trindade, profundamente enraizada na música popular brasileira, e do poeta Domingos Caldas Barbosa, autor de modinhas e lundus que se popularizaram tanto aqui quanto em Lisboa no século XVIII.
Colocando-se contra a corrente dos modelos estéticos institucionalizados, lutando contra o pouco caso das instâncias de legitimação, que, preconceituosamente, consideram perda de tempo estudá-las, a literatura produzida por afrobrasileiros existe e continuará existindo, nas páginas e nas ruas, talvez ainda como um pingente da literatura nacional, mas certamente com todo o direito a tornar-se passageira de primeira classe.
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Obras citadas
BASTIDE, R. 1983. “A poesia afro-brasileira”. Estudos afro-brasileiros. São Paulo: Perspectiva. p. 3-110.
——. 1987. Negritude e literatura na América Latina. Porto Alegre: Mercado Aberto.
——. Introdução à literatura negra. São Paulo: Brasiliense, 1988.
BROOKSHAW, D. 1978. Quatro poetas negros brasileiros. Estudos Afro-Asiáticos 2: 30-43.
——. 1983. Raça e cor na literatura brasileira. Trad. Marta Kirst. Porto Alegre: Mercado Aberto.
CAMARGO, O. org. 1986. A razão da chama: antologia de poetas negros brasileiros. São Paulo: Edições GRD.
——. 1987. O negro escrito. São Paulo: Secretaria de Estado da Cultura.
CARNEIRO, E. 1988. Antologia do negro brasileiro. Rio de Janeiro: Tecnoprint.
COBB, M. K. 1978 Harlem, Haiti, Havana: A Comparative Critical Study of Langston Hughes, Jacques Roumain, Nicolas Guillen. Washington, DC.: Three Continents.
DAMASCENO, B. G. 1988. Poesia negra no Modernismo brasileiro. Campinas: Pontes.
HATTNHER, A. L. 1999. Uma ponte sobre o Atlântico: poesia de autores negros angolanos, brasileiros e norte-americanos em uma perspectiva comparativa triangular. Tese, Universidade de São Paulo.
——. 2002. “Contrapontos da negritude: vozes afro-brasileiras e afro-americanas em diálogo”. Transit Circle 1: 130-150.
MOURA, C. 1988. Sociologia do negro brasileiro. São Paulo: Ática.
——. 1994. Dialética radical do Brasil negro. São Paulo: Editora Anita.
NUNES, C. 1972. “A poesia negra no Modernismo brasileiro”. Cultura 5: 118-123.
RIBEIRO, E., M. Barbosa & S. Fátima, orgs. 1996. Cadernos negros 19: poemas afro-brasileiros. São Paulo: Quilombhoje.
TRINDADE, S. 1961. Cantares ao meu povo. São Paulo: Fulgor.
BLACK POETRY IN AFRO-BRAZILIAN LITERATURE: ATTEMPTS AT DEFINITION AND SOME POSSIBILITIES FOR INVESTIGATION
ABSTRACT: This paper aims at the discussion of the main characteristics of Afro-Brazilian literary production, with focus on the theoretical propositions by Damasceno (1988) e Bernd (1988). Diverging slightly from those authors, we propose the idea that black literature is produced by black authors, with a worldview and the specific historic experience of subjects who acknowledge/affirm themselves as blacks. Thus, the aesthetic effectiveness of black literature is directly related to the forms of perTerra
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ceiving the world and the values of the black experience.
KEYWORDS: Afro-Brazilian literature, black poetry, Diáspora, experience
Recebido em 15 de outubro de 2009; aprovado em 30 de dezembro de 2009.

Há 104 anos nascia Solano Trindade, o criador da poesia negra brasileira

HOMENAGEM PROJETO A COR DA CULTURA12ª REGIONAL DE ITABAIANA PB


Por Drielly Jardim

“A leitura dos seus versos deu-me confiança no poeta que é capaz de escrever Poema do Homem e O Canto dos Palmares. Há nesses versos uma força natural e uma voz individual, rica e ardente, que se confunde com a voz coletiva.”. Assim Francisco Solano Trindade, nascido em 24 de julho de 1908, em Recife-PE, foi descrito pelo escritor e poeta Carlos Drummond de Andrade.

Poeta, folclorista, pintor, ator, teatrólogo e cineasta, Solano Trindade fez uso de seu talento a favor da luta contra o racismo e ao estudo e difusão da cultura afro-brasileira, além de ser reconhecido por vários críticos, como o criador da poesia “assumidamente negra” no Brasil.

Filho de um sapateiro e de uma operária, Solano Trindade ajudou a organizar o I Congresso Afro-brasileiro, ocorrido em 1934 em Recife, além de fundar a Frente Negra Pernambucana e o Centro de Cultura Afro Brasileiro, também no Recife. Na década de 1940, residiu no Rio de Janeiro e posteriormente, em São Paulo, transformou a cidade de Embu num centro cultural onde dezenas de artistas passaram a viver da arte, o que fez a cidade ser batizada com o nome de Embu das Artes.

Por não esconder que era lutador, grande defensor da liberdade e da cultura negra no país, Solano Trindade sofreu perseguições. Um de seus poemas mais conhecidos, “Tem Gente com Fome”, foi musicado em 1975 pelo grupo “Secos & Molhados”. A música foi proibida pela censura, sendo resgatada e gravada em 1980 por Ney Matogrosso, no álbum “Seu Tipo”. Mas, por causa desta música, em 1944, Solano foi preso e teve o livro “Poemas de uma Vida Simples” apreendido. Além disso, em 1964, um dos seus quatro filhos, Francisco Solano, morreu numa prisão da ditadura militar.

Entre suas publicações mais importantes estão: Poemas de uma vida simples 1944, Rio de Janeiro, e Cantares do Meu povo 1963, São Paulo, além de uma antologia chamada Poemas Antológicos lançada em 2008 e ilustrada por sua filha Raquel Trindade.

No teatro, foi Solano Trindade quem primeiro encenou a peça “Orfeu”, de Vinícius de Morais, em 1956, depois adaptada ao cinema pelo francês Marcel Cammus. Como ator, trabalhou nos filmes “Agulha no Palheiro”, “Mistérios da Ilha de Vênus” e “Santo Milagroso”.

Por onde passou, Solano incentivou e ajudou a construir inúmeras iniciativas culturais e políticas, dentre eles o Teatro Experimental do Negro, que levou para a Europa um teatro cheio de música, cores e poesia, com a influência de danças populares como o maracatu.

Solano Trindade faleceu no Rio de Janeiro, em 19 de fevereiro de 1974, aos 66 anos. Entretanto, deixou aos brasileiros um verso que prova que sua obra é imortal: “Me tornei cantiga determinadamente e nunca terei tempo para morrer”.

Obras - Confira abaixo o documentário ”Solano Trindade – O Vento Forte do Levante”, de Rodrigo Dutra, que tenta construir os caminhos e descaminhos de um dos maiores poetas brasileiros, e a letra da famosa poesia “Tem gente com fome”.

Mulher africana é a "maior"

 O PROJETO A COR DA CULTURA PARABENIZA AS MULHERES AFRICANAS POR MOSTRA A BELEZA NEGRA PARA O MUNDO AUTOR: NIVALDO MIGUEL 

Autor NIVALDO MIGUEL


Algo natural em sua raça e que as enche de graça, exigem muito respeito, não querem saber de preconceito apenas querem amar, ser amadas e ser respeitadas.

Esta sim, é a mulher africana de todos os tempos. Feliz mulher africana ao vosso dia que reflecte sobre o papel da classe feminina,  em África e na sociedade.

Os poemas escolhidos para o Dia Mundial da Poesia

PROJETO A COR DA CULTURA 12ª REGIONAL DE ITABAIANA PARAIBA

 HÁ 03 ANOS FAZENDO A DIFERENÇA 

COORDENADOR REGIONAL

NIVALDO MIGUEL 

Proclamado pela Unesco em 1999, o propósito do Dia Mundial da Poesia é promover o ensino, a leitura, a escrita e a sua publicação.


O SAPO escolheu sete, dentre muitos que fazem parte desta lista poetas que levaram a cultura angolana ao mundo. De António Jacinto a Alda Lara, de Agostinho Neto a Geraldo Bessa Victor, de Ondjaki a João Tala e João Maimona.

Carta dum Contratado

Eu queria escrever-te uma carta

amor,

uma carta que dissesse

deste anseio

de te ver

deste receio

de te perder

deste mais que bem querer que sinto

deste mal indefinido que me persegue

desta saudade a que vivo todo entregue...

Eu queria escrever-te uma carta

amor,

uma carta de confidências íntimas,

uma carta de lembranças de ti,

de ti

dos teus lábios vermelhos como tacula

dos teus cabelos negros como dilôa

dos teus olhos doces como macongue

dos teus seios duros como maboque

do teu andar de onça

e dos teus carinhos

que maiores não encontrei por aí...

Eu queria escrever-te uma carta

amor,

que recordasse nossos dias na capôpa

nossas noites perdidas no capim

que recordasse a sombra que nos caía dos jambos

o luar que se coava das palmeiras sem fim

que recordasse a loucura

da nossa paixão
e a amargura da nossa separação...

Eu queria escrever-te uma carta

amor,

que a não lesses sem suspirar

que a escondesses de papai Bombo

que a sonegasses a mamãe Kiesa

que a relesses sem a frieza

do esquecimento

uma carta que em todo o Kilombo

outra a ela não tivesse merecimento...

Eu queria escrever-te uma carta

amor,

uma carta que ta levasse o vento que passa

uma carta que os cajus e cafeeiros

que as hienas e palancas

que os jacarés e bagres

pudessem entender

para que se o vento a perdesse no caminho

os bichos e plantas

compadecidos de nosso pungente sofrer

de canto em canto

de lamento em lamento

de farfalhar em farfalhar

te levassem puras e quentes

as palavras ardentes

as palavras magoadas da minha carta

que eu queria escrever-te amor...
Eu queria escrever-te uma carta...
Mas, ah, meu amor, eu não sei compreender

por que é, por que é, por que é, meu bem

que tu não sabes ler

e eu - Oh! Desespero - não sei escrever também!

António Jacinto

Quitandeira

A quitanda.

Muito sol

e a quitandeira à sombra

da mulemba.

- Laranja, minha senhora,

laranjinha boa!

A luz brinca na cidade

o seu quente jogo

de claros e escuros

e a vida brinca

em corações aflitos

o jogo da cabra-cega.

A quitandeira

que vende fruta

vende-se.

- Minha senhora

laranja, laranjinha boa!

Compra laranja doces

compra-me também o amargo

desta tortura

da vida sem vida.

Compra-me a infância do espírito

este botão de rosa

que não abriu

princípio impelido ainda para um início.

Laranja, minha senhora!

Esgotaram-se os sorrisos

com que chorava

eu já não choro.

E aí vão as minhas esperanças

como foi o sangue dos meus filhos

amassado no pó das estradas

enterrado nas roças

e o meu suor

embebido nos fios de algodão

que me cobrem.

Como o esforço foi oferecido

à segurança das máquinas

à beleza das ruas asfaltadas

de prédios de vários andares

à comodidade de senhores ricos

à alegria dispersa por cidades

e eu

me fui confundindo

com os próprios problemas da existência.

Aí vão as laranjas

como eu me ofereci ao álcool

para me anestesiar

e me entreguei às religiões

para me insensibilizar

e me atordoei para viver.

Agostinho Neto

Testamento

À prostituta mais nova

Do bairro mais velho e escuro,

Deixo os meus brincos, lavrados

Em cristal, límpido e puro...

E àquela virgem esquecida

Rapariga sem ternura,

Sonhando algures uma lenda,

Deixo o meu vestido branco,

O meu vestido de noiva,

Todo tecido de renda...

Este meu rosário antigo

Ofereço-o àquele amigo

Que não acredita em Deus...

E os livros, rosários meus

Das contas de outro sofrer,

São para os homens humildes,

Que nunca souberam ler.

Quanto aos meus poemas loucos,

Esses, que são de dor

Sincera e desordenada...

Esses, que são de esperança,

Desesperada mas firme,

Deixo-os a ti, meu amor...

Para que, na paz da hora,

Em que a minha alma venha

Beijar de longe os teus olhos,

Vás por essa noite fora...

Com passos feitos de lua,

Oferecê-los às crianças

Que encontrares em cada rua...

Alda Lara

Lágrima gota lágrimas

lágrima

é uma sensação que escorrega.

mundo está seco de coisas e trans-sensações

assim a lágrima presta-se

a de ressequir o mundo.

porque:

mundo está duro;

mundo está pedinchar molhadezas

que só amor tem num bolso;

mundo está ainda grande e

tão pequenino já.

lágrima, afinal,

é uma carinhosa correção do mundo

e tem pontes com a amizade.

porque:

sinónimo sincero de amizade

é celebração.

assim mesmo, ela, húmida, bem húmida.

Ondjaki

Momento místico

ando a conversar com os ventos,

para que os ventos me contem, noite e dia,

histórias do quinjango e da rainha jinga.

e a voz dos ventos é uma eterna cantiga

(gritos épicos, líricos lamentos)

onde o meu verso escuta a voz da poesia.

converso com as chuvas e com os rios,

que contam a chorar contos da minha terra.

e é na chuva e no rio que meus olhos frios

descobrem o pranto ardente

onde a alegria se encerra

- e o meu verso encontra o ritmo fluente.

e converso com montes e nuvens – vultos vivos

de grandes negros mortos, tão livres, não cativos.

(aiué, quinjango, aiué!)

e na forma das nuvens e montes o meu verso,

tocado pela lenda e pela fé,

encontra a sua imagem e seu berço.

Bessa Victor

Colheitas Uterinas

Da paisagem testemunhei a prova de fogo.

o silencio material e a riqueza metafísica

na tua lavra, irmã, há colheitas uterinas:

uma nova viagem para que nos regressemos

nós mesmo na indiferença.

Liberdade sem medo, conta os dedos da

tua mão procriada, conta P’ra nação

nosso machado secreto canta pela raiz.

- tens essa noção de fogo em tua tabuada".

João Tala

Arte poética

Que erosão

no choque genésico das marés

de encontro às pedras habitadas.

Cai areia na areia.

Assim o gasto da palavra

limando os duros conformismos

libertando as verdades mais remotas

tão necessárias ao fruir dos gestos.

"Ó Angola meu berço do Infinito"

Ó Angola meu berço do Infinito

meu rio da aurora

minha fonte do crepúsculo

Aprendi a angolar

pelas terras obedientes de Maquela

(onde nasci)

pelas árvores negras de Samba-Caju

pelos jardins perdidos de Ndalatandu

pelos cajueiros ardentes de Catete

pelos caminhos sinuosos de Sambizanga

pelos eucaliptos das Cacilhas

Angolei contigo nas sendas do incêndio

onde os teus filhos comeram balas

e

regurgitaram sangue torturado

onde os teus filhos transformaram a epiderme

em cinzas

onde das lágrimas de crianças crucificadas

nasceram raças de cantos de vitória

raças de perfumes de alegria

E hoje pelos ruídos das armas

que ainda não se calaram pergunto-me:

Eras tu que subias montanhas de exploração?

que a miséria aterrorizava?

que a ignorância acompanhava?

que inventariavas os mortos

nos campos e aldeias arruinados

hoje reconstituídos nos escombros?

A resposta está no meu olhar

e

nos meus braços cheios de sentidos

(Angola meu fragmento de esperança)

deixai-me beber nas minha mãos

a esperança dos teus passos

nos caminhos de amanhã

e

na sombra d'árvore esplendorosa.

João Maimona

Dia Mundial da Poesia: Mais do que um estilo literário é um sentimento

PROJETO A COR DA CULTURA

Poesia é mais do que uma escrita, do que o antónimo de prosa, é provavelmente a expressão mais forte de sentimentos, emoções e sentidos do poeta, o borbulhar de qualquer coisa que entoada dá vida e interpretada descobre mil "quereres dizer".

No Dia Mundial da Poesia expressámos o sentimento de António Jacinto, poeta angolano dos anos 60, numa declamação a duas vozes da "Carta dum Contratado", um poema que descreve o amor puro do kimbo.



Proclamado pela Unesco em 1999, o propósito do Dia Mundial da Poesia é promover o ensino, a leitura, a escrita e a sua publicação.

A poesia é, talvez, das poucas artes que independentemente do título permite a qualquer um interpretar consoante o que lhe vai na alma.

Em Angola muitos são os autores que escreveram e escrevem os seus sentidos e emoções neste estilo literário.

O SAPO escolheu sete, dentre muitos que fazem parte desta lista poetas que levaram a cultura angolana ao mundo. De António Jacinto a Alda Lara, de Agostinho Neto a Geraldo Bessa Victor, de Ondjaki a João Tala e João Maimona.

Sete que perfazem a perfeição, que representam outros 7x7 que aqui não foram citados, mas que igualmente marcam uma rima, uma estrofe, um verso, uma métrica poeticamente angolana.

Um poeta da geração Mensagem

António Jacinto do Amaral Martins, nasceu no Golungo Alto, em 28 de Setembro de 1924.

Destaca-se como poeta e contista da geração Mensagem e, em consequência de seus envolvimentos políticos, é preso no campo de concentração do Tarrafal, Cabo Verde, onde cumpriu pena de 1960 a 1972. Neste ano, foi transferido para Lisboa, em regime de liberdade condicional, onde exerceu a função de técnico de contabilidade.

Fugiu em 1973 e foi integrar a luta pela independência de Angola, participando nas frentes militantes do MPLA. Após a independência, foi ministro da Cultura de 1975 a 1978. Morreu em 23 de Junho de 1991.

Obras poéticas: “O grande desafio”, “Poema de Alienação”, “Oração”, “Carta dum contratado”, “Monagamba”, “Conto interior de uma noite fantástica”, “Castigo pra o camboio malandro”, “Era uma vez”, “Bailarina Negra”.

Muitos poemas deram origem a canções, grandes sucessos de tempos que hoje já não se vivem. "Meu Amor da Rua 11" de Aires de Almeida dos Santos é um desses sucessos, eternizado pela Banda Mara vilha.

Contemporâneos de António Jacinto, Alda Lara e Agostinho Neto são nomes referenciados sempre que se fala em poesia angolana. Pela caneta de ambos retratavam-se quotidianos, quadros tipicamente angolanos.

O poeta de Catete que foi Presidente da República

Agostinho Neto é uma das figuras mais faladas. Formado em medicina na Universidade de Lisboa, primeiro Presidente da República, preso político, prémio Lenine da Paz, o poeta nascido no Bengo (1922) foi um dos fundadores da revista Momento com Lúcio Lara e Orlando de Albuquerque.

Comparado a Léopold Senghor, foi um esclarecido homem de cultura para quem as manifestações culturais tinham de ser, antes de mais, a expressão viva das aspirações dos oprimidos, armas para a denúncia de situações injustas, instrumento para a reconstrução da nova vida.

Membro fundador da União dos Escritores Angolanos, foi eleito pelos seus pares o seu primeiro Presidente.

Das suas obras poéticas destacam-se "Sagrada Esperança", "Adeus à hora da largada", "Quitandeira", "Voz de Sangue" ou "Mussunda amigo".

Morreu em 1979 e deixou um legado de amor à cultura, mantido vivo por Maria Eugénia, sua mulher.

Das acácias surgiu Alda, a autora de Prelúdio, obra mais conhecida por Mãe Negra

Alda Ferreira Pires Barreto de Lara Albuquerque, nasceu em Benguela, Angola, em 1930. Casou com o escritor Orlando Albuquerque e muito nova foi para Lisboa onde concluiu o 7º ano do Liceu. Frequentou as Faculdades de Medicina de Lisboa e Coimbra, licenciando-se por esta última.

Ligada a algumas das actividades da Casa dos Estudantes do Império, chamou a atenção dos poetas africanos como declamadora.

Orlando de Albuquerque publicou a sua obra póstuma e também após a morte da poetisa, foi instituído o Prémio Alda Lara para a poesia pela Câmara Municipal de Sá da Bandeira.

Os seus poemas mais conhecidos são "Testamento", "Presença africana", "Anúncio", "Prelúdio", "Ronda" e "Poemas que eu escrevi na areia".

Ondjaki, o jovem menino das artes

Ndalu de Almeida ou simplesmente Ondjaki, estudou em Luanda e concluiu licenciatura em Sociologia em Lisboa. Tem experiência na área do teatro e da pintura, actualmente reside no Rio de Janeiro, Brasil.

Em 2000 obtém o segundo lugar no concurso literário António Jacinto realizado em Angola e publica o primeiro livro, “Actu Sanguíneu”.

Entre prémios, livros e documentários, Ondjaki é já uma referência na literatura angolana.

Foi laureado com o Grande Prémio de Conto Camilo Castelo Branco em 2007, pelo seu livro “Os da Minha Rua”. Recebeu, na Etiópia, o prémio Grinzane por melhor escritor africano de 2008.

Em 2009 publicou o volume poético "Materiais para confecção de um espanador de tristezas".

O amor e a beleza feminina, por Geraldo Bessa Victor

Geraldo Bessa Victor escritor, poeta, ensaísta e jornalista era natural de Luanda (1917) e morreu em Lisboa em 1985.

Assumiu os modelos temáticos tão do agrado da população do continente, nomeadamente o amor, a beleza feminina e o poder do destino, enformando-os pela medida nova do soneto, obedecendo à sua norma estanque no que concerne ao seu esquema rimático e à métrica decassilábica que o caracterizam.

É justo dizer que o autor soube também cantar e exaltar os motivos africanos e mais concretamente os angolanos, como exemplificam os seus poemas "O menino negro não entrou na roda", "Kalundu" e "O Tocador de Marimba", os dois primeiros selecionados, em 1958, por Mário de Andrade na sua Antologia.


Geraldo Bessa Victor é autor, dentre outras, das seguintes obras: "Ecos Dispersos", "Mona dengue", "Ao Som das Marimbas", "Debaixo do Céu", "A Restauração de Angola", "Cubata Abandonada", "Mucanda".

Revelação da terra das quedas de Calandula

João Tala nasceu em Malanje a 19 de Dezembro. Iniciou-se na escrita no limiar da década de 80 quando residia no Huambo onde cumpria o serviço militar.

Nessa época funda a Brigada Jovem de Literatura Alda Lara e ingressa na faculdade de medicina. Já como médico exerce funções na Lunda Norte e posteriormente, em Luanda. Poeta ainda de reduzida obra, tem publicado o livro a "Forma dos Desejos", com o qual ganhou o seu primeiro prémio em 1997 da União dos Escritores Angolanos.

Tem no prelo o livro "Chão e Corpo de Líricas", primeiro lugar dos jogos Florais do Caxinde em 1999. Com a obra "O Gasto da Semente" foi lhe atribuída Menção Honrosa do prémio literário Sagrada Esperança, edição 2000.

Vários pontos de passagem, uma paixão, a poesia

João Maimona nasceu a 8 de Outubro de 1955, em Quibocolo, município de Maquela do Zombo, na província do Uíge. Em 1961 fez parte de um contingente de angolanos refugiados na actual República Democrática do Zaire.

Em Kinshasa estudou Humanidades Científicas e anos depois formou-se em Medicina Veterinária no Huambo.

É membro fundador da Brigada Jovem de Literatura do Huambo e é igualmente membro da União dos Escritores Angolanos.

Publicou as seguintes obras poéticas: "Trajetória Obliterada", "Traço de União", "Idade das Palavras"," As abelhas do dia" e "Quando se ouvir o Sino das Sementes".