Relogio: Vocês e o Tempo

quarta-feira, 17 de julho de 2013

Antonio Evaldo Almeida Barros 70 Estudos Étnicos..

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ESTUDOS ÉTNICOS:
Uma aproximação epistemológica
Antonio Evaldo Almeida Barros
RESUMO: 
O presente ensaio aborda alguns problemas teóricos e epistemológicos relacionados aos Estudos Étnicos, particularmente, a relação desses estudos com o debate sobre modernidade, pós-modernidade e descolonização do conhecimento, e as relações entre epistemologia e alteridade.
Palavras-chave: Estudos Étnicos. Epistemologia. Alteridade. Diferença.
ABSTRACT: This paper discusses some theoretical and epistemological problems related to Ethnic Studies, particularly the relationship between these studies and the debate on modernity, postmodernity and decolonizing knowledge, and the relationship between epistemology and alterity.
Keywords: Ethnic Studies. Epistemology. Alterity. Difference.
O presente ensaio trata de elementos que circundam e constituem o conhecimento dito científico tanto na dimensão de sua produção (paradigmas, métodos, técnicas) e implicações (para o campo científico e para o campo social, e trânsitos entre tais campos) quanto no âmbito das condições (sociais e históricas) que o possibilitam. Entende-se o conhecimento científico não como uma entidade, mas como um processo ao mesmo tempo cumulativo e de ruptura. Obviamente, o recorte será específico, a abordagem incidirá precisamente sobre algumas questões que se poderiam pensar em termos de uma epistemologia dos Estudos Étnicos.
Em linhas breves e sumárias, cabe pontuar que a noção de etnicidade forjada pela comunidade de língua inglesa na década de 1950 (especialmente pelas ciências sociais estadunidenses) consistiria sobretudo em colocar a existência de grupos étnicos como problema e não em atestar sua existência (POUTIGNAT;
 Este ensaio, cujo caráter é exploratório, se fundamenta em reflexões e em ensaios apresentados à disciplina Seminário e Metodologia de Pesquisa, cursada no segundo semestre de 2005 no âmbito do mestrado, e no primeiro semestre de 2009 no âmbito do doutorado, no Programa Multidisciplinar de Pós-Graduação em Estudos Étnicos e Africanos (Pós-Afro), da Universidade Federal da Bahia (UFBA).
 Professor Assistente da Universidade Federal do Maranhão (UFMA). Mestre e doutorando em Estudos Étnicos e Africanos pela UFBA. E-mail: eusouevaldo@yahoo.com.br
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STREIFF-FENART, 1998). Naquele momento, tanto no Brasil e na América Latina quanto naquela comunidade, essas discussões ganhariam visibilidade e dizibilidade como estudos sobre imigração. No Brasil, seria só a partir de 1970 que este campo de estudos começaria a ganhar corpo, o que se deu com o apoio de instituições não-governamentais, como a Fundação Ford. Mas é somente em 2005 que haverá na universidade brasileira um curso específico sobre Estudos Étnicos, a Pós-Graduação em Estudos Étnicos e Africanos da Universidade Federal da Bahia.1
Na verdade, a problemática étnica tem se manifestado em diversos departamentos de faculdades e universidades sem, no entanto, estar sistematizada em um só e único corpo. A matriz desse campo de estudos é inter e multidisciplinar por acreditar que a organização disciplinar acadêmica clássica não permite que se analise exaustivamente sua problemática. Pretende analisar multiplicidade e pluralismo cooperativo entre identidades variadas, possíveis interações entre indivíduos diversos e diferenças e similaridades entre grupos sociais e étnicos. Nele, fala-se em romper fronteiras (de tradição), sendo que os grupos étnicos frequentemente se anunciam como baseados em fronteiras (espaços, culturas, etnias).
O campo dos estudos étnicos se pretende local, nacional, transnacional e diaspórico, pois entende que a construção de noções e representações como “tribo”, etnia, grupo étnico, “raça”, negro, branco, índio, têm circulado em diferentes áreas do Atlântico ao longo de séculos. Desse modo, os Estudos Étnicos constituem um campo de análise de discursos e práticas translocais, interconectando-se com os Estudos Africanos, que também são marcados por aquelas noções. Trata-se de um campo de estudos que surge com demandas sociais: num ambiente social definido, em grande medida, por reivindicações de movimentos sociais antirracistas e, em alguns casos, também (denominados como) étnicos, torna-se efetivamente possível o desenvolvimento de uma reflexão/pesquisa sobre relações interétnicas. Não se pode desconsiderar que o surgimento de uma Pós em Estudos Étnicos e Africanos no Brasil também está relacionado às pesquisas de estudiosos que têm produzido trabalhos nesse campo, assim como “a estratégia que o Brasil tem desenvolvido, nos últimos anos, intensificada” no governo Lula, “de maior aproximação
1 Diferentemente do caminho até então percorrido pelos Estudos Étnicos na academia estadunidense, no Brasil, até o momento, esse campo de estudos não tomou forma como curso de graduação.
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diplomática, troca comercial e intercâmbio cultural com países africanos” (SANSONE, 2005, p. 4).
Se, de um lado, se podem apontar especificidades da recente história, constituição e características dos Estudos Étnicos, de outro, epistemológica e metodologicamente esse campo de estudos parece ser inserir em discussões mais amplas das ciências sociais e humanas e, algumas vezes, na intersecção (por sinal, conflituosa) com ciências biológicas e médicas, discussões estas que podem ter implicações diretas na constituição de seu campo epistemológico. Diante disso, prossegue-se este ensaio analisando-se elementos que se consideram relacionáveis a uma possível epistemologia dos Estudos Étnicos, a saber: 1) os Estudos Étnicos na intersecção das discussões entre modernidade, pós-modernidade e descolonização do conhecimento; 2) a interconexão entre epistemologia e alteridade, ou seja, como à construção epistemológica se relacionam representações acerca do Outro; 3) o conhecimento na passagem do objeto real para o objeto percebido e seu caráter pré-estruturado e conjectural; 4) (des)encontros entre discurso científico e discurso comum; 5) “raça”, sangue e DNA – ciências humanas e biomédicas construindo identidades; 6) entre o critério da pertença e o critério da discriminação – um dilema sócio-epistemológico?
1. É fundamental notar que os Estudos Étnicos não escapam, mas, pelo contrário, estão sendo gestados dentro de discussões e disputas entre visões ditas “modernas” e “pós-modernas”. Há que se considerar ainda discursos que enfatizam “descolonização do conhecimento” e pluralidade epistêmica. Geralmente, discursos denominados de pós-modernos têm se estruturado como críticos àqueles considerados modernos, e perspectivas de descolonização do conhecimento têm se pretendido para além daqueles dois, criticando-os, vendo-os como o avesso e o direito de um mesmo artefato. É óbvio que nem todas as formas de pensar no contexto dos Estudos Étnicos necessariamente podem ser encaixadas em um daqueles grupos. Entretanto, analiticamente aquelas são tendências que podem ser visualizadas.
O chamado moderno teria surgido no contexto do desenvolvimento capitalista e da sociedade burguesa se colocando, de certo modo, contra ele, pretendendo-se crítico, secular e racional. O pós-modernismo (também chamado de desconstrutivismo), por seu turno, apresenta-se como reação aos movimentos modernos anteriores. O “pós” indicaria localização histórica, o uso do pastiche (quando são perdidas as bases
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normativas) e a importância das imagens, além do fim das metanarrativas. Critica-se, assim, numa perspectiva desconstrutivista, conceitos, idéias e valores que sustentam o pensamento dito ocidental (clássica e modernamente entendido) como a razão, o tempo, o espaço e o sujeito.
Filósofos como Michel Foucault, Jacques Derrida, Giles Delleuze, dentre outros (intelectuais ditos pós-modernos cujos pensamentos são reelaborados em diversas disciplinas acadêmicas), influenciados pelo estruturalismo não discordarão do pensamento moderno ocidental hegeliano, segundo o qual a razão é histórica. Entretanto, ao contrário de Hegel, entenderão que essa história não é contínua, cumulativa, evolutiva e progressiva. Assim, hodiernamente, para além do estranhamento e do relativismo estaria o pastiche, tempo de confusão entre o passado, o presente e o futuro, uma visão em que o tempo não é mais entendido como linear (concepção cristã que serve de base para a noção de progresso futuramente capitalista – ver TERRA, 1995, p. 141). Epistemologicamente, o problema não seriam as representações, mas a representação de representações de outros, o mundo da textualidade, “o colapso da relação entre significantes” onde estes são transformados em imagens (RABINOW, 1990, p. 91).
Na perspectiva pós-modernista de James Clifford (1998, p. 18-19), por exemplo, este seria um “mundo ambíguo, multivocal”, no qual se torna “difícil conceber a diversidade humana como culturas independentes, delimitadas e inscritas”, sendo “crucial para os diferentes povos formar imagens complexas e concretas uns dos outros, assim como das relações de poder e de conhecimento que os conectam”. Entretanto, “nenhum método científico soberano ou instância ética pode garantir a verdade de tais imagens”.
De certo modo, essa argumentação pós-moderna é tornada possível devido às críticas feitas por filósofos como Wittgenstein, Heidegger e Dewey que, na primeira metade do século XX, entendiam que seu objetivo não era melhorar a epistemologia mas sim jogar diferentemente, o jogo de hermenêutica, isto é, um conhecimento sem fundamentos, um saber que se convertia basicamente numa conversação edificante. Esse entendimento questionava a noção de conhecimento como uma representação acurada, “possível através de processos mentais e inteligível através de uma teoria geral da representação”. Imagem tal que, como mostra Richard Rorty, surgiu no século XVII, desenvolvendo-se numa sociedade específica, a européia, e que triunfou filosoficamente “por estar fortemente associada às reivindicações profissionais de
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um grupo, professores de filosofia alemães [neokantianos] do século XIX”. (RABINOW, 1990, p. 72-74).2
Argumentações dos pós-modernos têm sido criticadas. De acordo com Adam Kuper3, no cerne dos argumentos de diversos pós-modernistas4 há três proposições compatíveis entre si, são elas: 1) nos termos do comércio cultural, houve uma mudança histórica em todo o mundo, 2) “não é mais possível (se é que alguma vez foi) construir relatos objetivos de outros modos de vida” e 3) “há uma obrigação moral de louvar as diferenças culturais e defender aqueles que estão resistindo à ocidentalização” (KUPER, 2002, p. 279). Proposições essas que seriam altamente questionáveis. Em primeiro lugar, “existe uma contradição óbvia entre essa
2 Há diferentes relatos referentes ao moderno/modernismo e pós-moderno/pós-modernismo. Visando fornecer um relato histórico das origens da ideia de pós-modernidade atualmente disponíveis e levantar, de maneira experimental, algumas das condições que podem ter produzido o pós-moderno não como ideia, mas como fenômeno, Perry Anderson (1999) observa que pós-modernismo e modernismo “nasceram numa periferia distante e não no centro do sistema cultural da época: não vêm da Europa ou dos Estados Unidos, mas da América hispânica”, precisamente do Peru, de fins do século XIX (ANDERSON, 1999, p. 9). A primeira obra filosófica a adotar a noção pós-moderno teria sido A condição pós-moderna, de Jean-François Lyotard, publicada em Paris, em 1979. A chegada da pós-modernidade se ligaria ao surgimento de uma sociedade pós-industrial na qual o conhecimento tornara-se a principal força econômica de produção. A sociedade teria deixado de ser concebida com um todo orgânico (Parsons) ou como um campo de conflito dualista (Marx), e passaria a ser vista como uma rede de comunicações linguísticas: a própria linguagem – “todo o vínculo social” – compunha-se de uma multiplicidade de jogos diferentes, cujas regras não se poderiam medir. A ciência teria virado apenas mais um de tantos jogos de linguagem. Criticam-se, assim, os dois mitos fundadores da modernidade: o primeiro, derivado da Revolução Francesa, que colocaria a humanidade como agente heroico de sua própria libertação através do avanço do conhecimento; o segundo, descendente do idealismo alemão, que veria o espírito como progressiva revelação da verdade. Lyotard anuncia o grande eclipse de todas as narrativas grandiosas: o socialismo clássico, a redenção cristã, o progresso iluminista, o espírito hegeliano, a unidade romântica, o racismo nazista, o equilíbrio keynesiano. Obras posteriores selariam o tom do debate entre moderno e pós-moderno, particularmente Jürgen Habermas, em Modernidade: um projeto incompleto, de 1980, que teria servido de polo negativo às perspectivas de Lyotard, e Frederic Jameson, em A guinada cultural, de 1982, cuja visão inicial de pós-modernismo tendia a encará-lo como sinal da degenerescência interna do modernismo, para a qual o remédio seria um novo realismo ainda a ser ideado. (ANDERSON, 1999).
3 Que se diz “liberal, no sentido europeu e não americano”, um “materialista moderado e com convicções brandas sobre direitos humanos universais”, “refratário ao idealismo e ao relativismo da teoria cultural moderna” (KUPPER, 2002, p. 13).
4 O autor se refere especialmente a James Clifford, Rosaldo e Virginia Woolf.
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epistemologia relativista e a alegação de ser capaz de apontar com precisão uma crise cultural cósmica”. Como se pode dizer que o mundo mudou sem se possuir nenhuma informação objetiva sobre ele? Em segundo lugar, há um problema moral nos discursos que se fundam em identidade, o “problema da legitimidade. Quem pode falar pelo Outro?”. A “oposição maniqueísta entre nativos e colonialistas, oprimidos e opressores” poderia “impor uma uniformidade factícia sobre todos os povos pós-coloniais, essencializando-os, coagindo-os a desempenhar o papel da vítima estereotipada numa representação ocidental da Paixão de Cristo” (KUPER, 2002, p. 286). Desse modo, o limite do pós-modernismo (e do seu relativismo) seria ao mesmo tempo cognoscitivo, ético e político, opinião também compartilhada por Ginzburg (2000b, p. 42).
Ao que tudo indica, disputas entre, de um lado, cultura e civilização universal e, de outro, culturas e civilizações particulares têm sua raiz em duas tradições européias, a francesa e a alemã, uma disputa entre iluministas e românticos (KUPER, 2002; CARDOSO, 1997). Na tradição francesa, a civilização é vista desde uma perspectiva evolucionista e otimista. Aqui, as civilizações são “altas culturas”, “uma forma superior de cultura” (CARDOSO, 1997, p. 1-2) representada como uma conquista progressiva, cumulativa e distintamente humana. Seria indubitável o fato de que a civilização se desenvolveu plenamente na França, “mas, em princípio ela pode ser usufruída, embora talvez não com a mesma intensidade, por selvagens, bárbaros e outros povos europeus”, além disso, ela pode convocar a ciência para auxiliá-la (KUPER, 2002, p. 26). Na tradição alemã, cultura designava os costumes específicos de sociedades vistas e pensadas individualmente (CARDOSO, 1997, p. 2), os intelectuais alemães defendiam “a tradição nacional contra a civilização cosmopolita; os valores espirituais contra o materialismo; as artes e os trabalhos manuais contra a ciência e a tecnologia”, convocando “as emoções, até mesmo as forças mais obscuras do nosso íntimo contra a razão árida”. Os pensadores iluministas tratavam do progresso do ser humano, os alemães se interessavam pelo destino específico de uma nação. Franceses, iluministas; alemães, contra-iluministas. “Vozes ancestrais perseguem os escritores contemporâneos” (KUPER, 2002, p. 27; 31). Considerando isso, disputas contemporâneas entre modernos e pós-modernos poderiam ser percebidas como reverberações dos conflitos e antitetismos daquelas duas correntes outrora litigantes.
O fato é que confrontos entre modernos e pós-modernos enquanto disputas mais amplas do campo científico repercutem
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forte e intensamente nos Estudos Étnicos. Gilroy (2001) e Hall (2003), por exemplo, refutam críticas modernas feitas a argumentações pós-modernas. Depois de notar que críticos do projeto iluminista tiveram o mérito de atentar para as pretensões tão audaciosas quanto universalistas da modernidade ocidental “e sua confiança arrogante em sua própria infalibilidade”, Gilroy (2001) considera “decepcionante que a posição dos céticos tenha sido depreciada por um coro de comentários retóricos que extrai seu entusiasmo dos excessos do pós-estruturalismo antipolítico em geral e da crítica literária desconstrutivista em particular”. Para Gilroy (2001), “o trabalho de uma série de pensadores negros pode fazer parte de uma argumentação geral de que há outras bases para a ética e a estética que não as que parecem imanentes às versões da modernidade elaboradas pelas míopes teorias eurocêntricas”, uma “teoria descontínua” que “tem sido obstruída pela dominação das elites literárias européias e americanas, cujas vozes modernistas altissonantes dominaram o clamor dos discursos filosóficos e políticos que se elevam desde o século XVIII para agora nos assombrar”. Mais que incluir comentários negros sobre o moderno na história intelectual ocidental, seria necessário “questionar a credibilidade de uma concepção ordenada e holística da modernidade”, argumentando “em favor da inversão da relação entre margem e centro, tal como tem se manifestado nos discursos senhoriais da raça dos senhores”. Uma pesquisa que seguisse tal rumo complementaria e mesmo estenderia o trabalho de filósofas feministas “que se opuseram à representação da mulher como um signo para o outro reprimido ou irracional de uma racionalidade identificada como masculina”.
É neste âmbito que ocorrem discussões em torno de uma das problemáticas centrais dos Estudos Étnicos: o colonial, o pós-colonial e a descolonização (do conhecimento). Apesar de em alguns momentos essas abordagens se aproximarem em elementos muito específicos, elas se estruturam em bases epistemológicas diferentes e, desse modo, tem implicações sócio-políticas diversas.
Criticando discursos pós-modernos, Shohat considera que o pós-colonial é politicamente ambivalente porque obscurece as distinções nítidas entre colonizadores e colonizados, dissolvendo a possibilidade de uma política de resistência. Ora, uma vez que não propõe uma dominação clara acaba por impossibilitar uma oposição clara. Nessa mesma direção, Arif Dirlik nota que o pós-colonialismo é um discurso pós-estruturalista e pós-funcionalista empregado principalmente por intelectuais deslocados do dito Terceiro Mundo que estariam se dando muito bem em universidades
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estadunidenses prestigiosas. O discurso pós-colonial seria um culturalismo. (HALL, 2003)
Contestando tais posições, Hall (2003) afirma que atualmente “os binarismos políticos não estabilizam permanentemente o campo do antagonismo político (se é que já o fizeram antes), nem conferem a este uma inteligibilidade transparente”. Para ele, o pós-colonial seria vivido de formas diferentes e uma de suas principais contribuições teria sido notar que “a colonização nunca foi algo externo às sociedades das metrópoles imperiais. Sempre esteve inscrita nelas – da mesma forma que se tornou indelevelmente inscrita nas culturas dos colonizados”. O pós-colonial “não é uma dessas periodizações baseadas em „estágios‟ epocais, em que tudo é revertido ao mesmo tempo, todas as antigas relações desaparecem definitivamente e outras, inteiramente novas, vêm substituí-las”.
Ainda para Hall (2003), a desconstrução de certos conceitos-chave pelos discursos “pós” não significou uma extinção ou desaparecimento dos mesmos, mas sua proliferação. Esses conceitos passaram a ocupar uma posição “descentrada” no discurso. Talvez seja exatamente por isso que o discurso da descolonização do poder e do conhecimento propõe um outro modo de pensar, para além da epistemologia na qual estariam subsumidos tanto modernos quanto pós-modernos, pois centrados ou descentrados os conceitos permaneceriam os mesmos.
Embora em alguns momentos se aproxime do discurso pós-moderno, especialmente quando este propõe relatos não centrados na Europa (pensada aqui não como espaço geográfico, mas como campo simbólico e epistemologicamente identificado e definido como pensamento ocidental), críticos da “colonização do poder”, propositores de uma “democratização epistemológica” apresentam uma concepção específica e particular.5 Nesta perspectiva, entende-se que a discussão epistemológica das ciências sociais vem se pautando num modelo eurocêntrico que se pretende universal e imparcial, embora seja gestado desde um lugar específico (eurocentrismo). Um homem particular, o europeu (representado no pensamento moderno cartesiano), funda um
5 Nas Américas, esta corrente se relaciona, por exemplo, às filosofia e teologia da libertação latino-americanas (dentre os quais é possível destacar Enrique Dussel, Agustín Lao, Hector Cordero-Guzman, Walter Mignolo, Aníbal Quijano, James Cohen, Nina Glick Schiller, Louis Mazzari, Immanuel Wallerstein e Ramón Grosfoguel). Mas esta abordagem do campo dos Estudos Étnicos é translocal, o que pode ser verificado com o trabalho de Linda Smith (2001) produzido no contexto australiano, como se verá mais adiante.
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pensamento, mas este pensamento se pretende universal, um cogito encarnado que se diz desencarnado. O conhecimento que se tem produzido seria largamente baseado nesse paradigma, em que o outro é visto como um objeto e não como um sujeito que pensa. A América Latina estaria vivendo uma independência colonial, independência sem descolonização. Desse modo, se deveria falar em “colonialidade do poder” e não em um mundo pós-colonial (GROSFOGUEL, 2005b).
As ciências sociais contemporâneas, baseadas naquele paradigma, produziriam um conhecimento desde uma perspectiva solipsista, isto é, um conhecimento baseado no si mesmo, num sujeito que pensa a si próprio e que não consegue pensar para além desse eu. Eurocentrismo é aqui essencialmente o não considerar a possibilidade de construção de outros paradigmas. Fundamental para mudar essa situação seria democratizar a epistemologia, redefinir o que é o humano. Sendo possível a existência de diversos cânones, pretende-se buscar uma diversidade epistêmica.
O afrocentrismo, nesta perspectiva, é visto como um eurocentrismo. E este apenas o mais forte dos fundamentalismos. Assim, o que se busca não é uma perspectiva identitária, mas um prisma localizacional. Uma visão que lê o poder não hierárquica, mas heterarquicamente. A “colonialidade do poder” se estruturaria em três níveis que só podem ser compreendidos de modo inter-relacionado: o local, o nacional e o global (GROSFOGUEL, 2005a). Diante de um discurso homogeneizador, globalizador, não se pretende propor uma anti-globalização (que se encerraria em particularismos e fundamentalismos), mas uma alter-globalização (um outro mundo é possível).
Diante disso, critica-se fortemente o multiculturalismo 6 (cuja preocupação residiria no fato de as diferenças serem tratadas com desprezo, sendo vistas como desvios de norma; um discurso pós-moderno, contra-iluminista), pois se entende que nele as manifestações populares e negras são apropriadas tão somente
6 Terence Turner (Apud KUPER, 2002, p. 294-295) fala de dois tipos de multiculturalismo, o de diferença e o crítico. O primeiro seria voltado para dentro, é orgulhoso acerca da importância de dada cultura e de sua alegação de ser superior. Já o segundo é voltado para fora e objetiva desafiar os preconceitos culturais da classe social dominante visando expor elementos vulneráveis do discurso hegemônico. Kuper (2002, p. 295-296) nota que este último é fortemente influenciado pelos estudos culturais. Nos dois casos, suas pressuposições representam a crítica mais recente e mais estadunidense da ideologia do establishment.
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como folclore e cultura popular e não como espaço de produção do conhecimento. A pós-modernidade é vista como uma continuidade, pois se fundaria no mesmo paradigma da modernidade do ocidente europeu. Compreende-se que, em grande medida, a história do pensamento ocidental quando fala em pluralidade retoma o debate entre absolutismo vs. relativismo. Ambos, entretanto, partiriam do mesmo lugar epistêmico, não propondo formas diferentes de pensar e produzir saber. O multicultaralismo é visto tão somente como uma voz que reclama a pluralidade e o relativismo cultural, e não um relativismo epistêmico. Isto significaria mais que reconhecer grupos étnicos e culturais diversos (multiculturalismo) e passar a reconhecer que tais grupos possuem diversas formas de pensar, de produzir conhecimento (pluralidade epistêmica). Fundamentalmente, o pluralismo epistêmico questionaria as relações de poder, o multiculturalismo manteria as coisas como estão.
Mais uma vez, afastando-se tanto do modernismo quanto do pós-modernismo, entende-se que o mundo não é tão dicotômico como pensam discursos modernos e nem tão fragmentado como enunciam vozes pós-modernas. Desse modo, aceita-se que os Estudos Étnicos necessitam relacionar umbilicalmente produção epistemológica e reivindicação política, produzir conhecimentos sem reproduzir os essencialismos das políticas identitárias, contribuindo para a descolonização das relações étnico-raciais (GROSFOGUEL, 2005c, p. 8). Um grande problema a ser enfrentado no século XXI não seria a linha de cor que define relações sociais, mas sim, a invisibilização dessa linha. Certamente, aqui, umas das maiores dificuldades é efetivar um projeto de descolonização de dentro de uma instituição que é vista como instituição da colonialidade do poder, a universidade.
É nessa mesma direção que Linda Smith (2001) – para quem os estudos pós-modernos seriam fundamentalmente uma reinvenção conivente de intelectuais ocidentais que reinscrevem e redefinem seu poder no mundo – critica a simples criação de políticas de identidades multiculturalistas nos anos 1970, que afirmariam tão somente que certos grupos possuem valores culturais, sem mudar estruturas de poder. Na lógica estatal, a história e a cultura passam a ser elementos-chave para a elaboração de políticas públicas, mas se trata aqui não de uma cultura encarada como geradora de conhecimento, mas uma cultura fetichizada, essencializada. Isso acabaria por mistificar relações de poder. Fugindo desse enredo, a autora propõe que metodologias e epistemologias sejam construídas na perspectiva do outro, desde o
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lugar que este ocupa. Não interessa então o que é significativo para o eu que elabora certas políticas, mas sim o que é interessante e significativo para o mundo cultural e circunstancial do outro.
Este, de fato, é um espaço de (des)encontros. Rabinow (1990) concordaria com Grosfoguel (2005a, 2005b, 2005c) ao entender que “devemos evitar o erro de reverter essencializações: „ocidentalização‟ não é um remédio para „orientalismo‟”. De outro, discordaria tanto de Grosfoguel quanto de Smith (2001), ao afirmar que “não necessitamos de uma teoria de epistemologias indígenas ou de uma nova epistemologia do Outro. Devemos estar atentos à história da projeção de nossas práticas culturais sobre o Outro”. Diante disso, “o melhor que podemos fazer é mostrar como, quando e através de que meios culturais e institucionais outros povos começaram a reivindicar a epistemologia para si próprios”.
Enfim, pelo menos três posições se apresentam: primeiro, visões alicerçadas em uma epistemologia dita clássica – moderna, entendendo-se que ela precisa ser melhorada e mesmo desenvolvida; segundo, discursos que pretendem desconstruir, descentrando conceitos (ao que tudo indica, dessa mesma epistemologia) e mesmo exotizando a modernidade – pós-modernos; terceiro, propostas de democratização epistemológica, da crença de que é possível a existência de cânones epistemológicos diversos, para além de fundamentalismos, que tão somente impossibilitariam diálogos e fundam uma epistemologia única. Seguramente se devem considerar ainda caminhos transversais que podem ser trilhados entre tais perspectivas, afinal de contas, há aqui, em última análise, do ponto de vista epistemológico, uma disputa de cânones, de campos de saber e espaços de poder.
2. Epistemologia e alteridade se interconectam: à construção epistemológica se relacionam as representações acerca do Outro. No caso dos Estudos Étnicos, esta relação está sempre e profundamente em discussão, como se revela no caso do Brasil, onde “nosso principal foco temático é a construção do Outro e da diversidade, em seus desdobramentos representados pelas „raças‟, grupos e identidades étnicas, idéias e representações em torno da noção de nacionalidade” (SANSONE, 2005, p. 4). Ora, a indumentária teórico-metodológica dominante é cartesiana. Uma indumentária construída no século XVII, triunfante no século XIX e que, apesar de ser questionada ao longo dos tempos, ainda guarda sua força. É uma indumentária gestada e conformada pela filosofia ocidental.
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Como afirma Clifford (1998, p. 18), o desenvolvimento da ciência (no caso, etnográfica) deve ser compreendido, em última análise, junto a um debate político-epistemológico mais geral sobre a escrita e a representação da alteridade. É o outro que será representado textualmente no escrito. E tal processo, de passagem do outro para o texto, “é complicado pela ação de múltiplas subjetividades e constrangimentos políticos que estão acima do controle do escritor”. Desse modo, já que se estaria condenado a contar histórias que não se pode controlar, pelo menos não se as deveria contar acreditando que são “as verdadeiras”. O fato é que questões sobre epistemologia e alteridade não se podem dissociar.
A preocupação da filosofia ocidental é com a epistemologia, isto é, “a equação do conhecimento com representações internas e a avaliação correta dessas representações”. Tal conhecimento produzido pelo exame das representações acerca da “realidade” e do “sujeito conhecedor” é aceito como universal, ele é a ciência (RABINOW, 1990, p. 71-72). Como já se pontuou, o nascimento da filosofia se deu quando um sujeito conhecedor, dotado de consciência e de seus conteúdos representacionais, tornou-se o problema central para o pensamento, paradigma de todo saber – a construção iniciada por René Descartes e coroada por Immanuel Kant, instituindo a modernidade, paradigma em que o homem se torna o fundamento (sujeito e objeto) do conhecimento.
Nessa mesma direção, Emmanuel Lévinas7 salienta que o percurso da filosofia ocidental é como o itinerário ulissiano, é um sempre retorno para casa, uma volta ao Idêntico, ao Mesmo, um contexto em que a afirmação da Una Totalidade implica negação do Outro. Na “Odisséia”, de Homero (1981), nada é capaz de impedir o retorno de Ulisses para junto de seus mesmos, de sua Ilha Ítaca, uma viagem única, com um único destino no qual tudo e todos são abarcados. A história da filosofia e do pensamento ocidental “pode interpretar-se como uma tentativa de síntese universal, uma redução de toda a experiência, de tudo aquilo que é significativo, a uma totalidade em que a consciência abrange o mundo, não deixa nada fora dela, tornando-se assim pensamento absoluto” (LEVINAS, 1988a , p. 67). O itinerário da filosofia enquanto identificado com o percurso ulissiano é um desconhecimento do outro, uma complacência no mesmo. A única coisa certa do
7 Filósofo lituano-francês (1905-1995), judeu, cujo pensamento guarda relações muito próximas com a filosofia e teologia da libertação latino-americanas. Para uma aproximação da filosofia levinasiana, ver, por exemplo, BARROS (2004a e 2004b).
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conhecimento é a própria consciência do Eu que conhece, numa perspectiva em que “o corpo do outro entra em minha percepção „acoplado‟ ao vejo o „outro eu mesmo‟” (PELIZZOLI, 1994, p. 48), um solipsismo.
Um pensamento que tem implicações políticas profundas. Nele, como afirma Mbembe (2001), sendo a identidade da humanidade genérica e essencialmente universal, entende-se que direitos e valores dela derivados podem ser partilhados por todos. “Uma natureza comum une todos os seres humanos. Ela é idêntica em cada um deles, porque a razão está em seu centro.” O exercício da razão leva à liberdade, à autonomia e “à habilidade de guiar a vida individual de acordo com princípios morais e com a idéia do bem”. O problema é que “fora deste círculo, não há lugar para uma política do universal”.
A intersecção entre epistemologia e alteridade é contínua e problemática. Analisando argumentações de Michel Foucault, Richard Rorty (e mais as contribuições de Hacking a este), Rabinow (1990) entende que a posição foucaultiana diante das discussões em torno de verdade, certeza e razão (conceitos-chave da problemática epistemológica) se apresenta como digna de confiança, superando com consistência a proposta por Rorty.
Se Rorty separa as noções de certeza e verdade, Hacking propõe o anarco-racionalismo, isto é, não a tentativa de busca de uma verdade, como propõe a lógica clássica, mas “a tolerância para com outras pessoas, combinada com a disciplina dos próprios padrões de verdade e razão”, haja vista que aquilo que é aceito como verdade depende necessariamente de um evento histórico antecedente que estabelece a priori se uma certa proposição pode ou não ser verdadeira ou falsa. Já Foucault 8 mostra que objetos discursivos, modalidades enunciativas, conceitos e estratégias discursivas são formados e transformados. Assim, nas basta dizer a verdade, é preciso estar epistemicamente na verdade (dentro da ordem do pensamento)9 para que ela seja aceita enquanto tal. (RABINOW, 1990, p. 74-77)
8 Que escreve “uma história da verdade” (DELACAMPAGNE, 1997, 248-260).
9 De fato, para Foucault (1995), refletir sobre “episteme” é pensar sobre a ordem, o ordenamento do pensamento, o que é bem mais amplo do que refletir sobre a ciência, que se submete às regras do pensamento em geral. A episteme se refere exatamente ao conjunto de condições que possibilitam o pensamento em dada cultura e tempo. É a episteme que permite a exclusão de alguns e a inclusão de outros. Diferentemente da epistemologia (científica) que normaliza, a arqueologia foucaultiana privilegia a historicidade do discurso, estudando suas próprias peculiaridades de modo descritivo e não normativo, analisando uma ordem
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As idéias filosóficas são vistas por Rorty “como mudanças gratuitas numa conversação ou na filosofia”, já para Foucault elas são práticas sociais. O pensamento foucaultiano estrutura-se, assim, a partir de três hipóteses: primeiro, “a verdade é para ser entendida como um sistema de procedimentos ordenados para a regulamentação, distribuição e operação de afirmações”; segundo, “a verdade está conectada, numa relação circular, com sistemas de poder que a produzem e a confirmam, e com efeitos de poder que ela induz e que a estendem”; terceiro, “este regime não é meramente ideológico ou superestrutural: foi uma condição para a formação e o desenvolvimento do capitalismo” (RABINOW, 1990, p. 78-79).
É considerando isso que Rabinow (1990, p. 79) entende que é necessário não criar epistemologias do Outro, mas “antropologizar o Ocidente: mostrar quão exótica tem sido a sua constituição da realidade; enfatizar aqueles domínios tidos como universais (isto inclui a epistemologia e a economia)”; mostrá-los, assim, “o mais possível como sendo historicamente peculiares; evidenciar como suas reivindicações à verdade estão conectadas a práticas sociais a se tornarem, portanto, forças efetivas no mundo social”.
Interessante notar que o filósofo contemporâneo Emmanuel Levinas extrai da própria elaboração cartesiana um elemento para se pensar não o eu abarcando o outro, mas uma total separação entre ambos. Trata-se da reavaliação da idéia de Infinito em Descartes feita por aquele filósofo, em que se propõe um paradigma a partir do qual se poder pensar a relação entre o Outro e o Mesmo em que aquele não seja absorvido e sacrificado por este. Trata-se, fundamentalmente, de uma tentativa de vivenciar a alteridade como separação absoluta e originária.
Os dois pontos centrais do pensamento cartesiano são: o cogito e a Idéia de Deus como Infinito. Segundo Descartes, é impossível que nada no mundo seja certo, pelo menos uma coisa deve ser indubitavelmente certa, pelo menos cada de um nós, por estarmos pensando, temos certeza de que existimos. Diz Descartes: “eu sou, eu existo” e “pelo nome de Deus entendo uma substância infinita, eterna, imutável, independente, onisciente e pela qual eu próprio e todas as coisas que são (se é verdade que há coisas que existem) foram criadas e produzidas” (DESCARTES, 1983, p. 189). Um cogito que propõe a própria consciência de fato e de direito, como
interna. Para Foucault, não há um telos que indique a passagem de uma episteme para outra, a história não é contínua, ao contrário, a descontinuidade é sua marca.
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absoluto, fonte e fundadora de suas próprias verdades, separada de princípios externos.
A reavaliação levinasiana da idéia cartesiana de Infinito consiste em ter percebido nela que aquilo a que a idéia visa é infinitamente maior do que o próprio ato por meio do qual se pensa, ou seja, entre o ato de pensar e aquilo a que o ato dá acesso há uma desproporção. Como se viu, para Descartes, uma vez que o pensamento não pode produzir algo que o ultrapasse, fazia-se necessário que este algo em nós fosse posto: uma prova da existência de Deus. Entretanto, o que interessa mesmo para Levinas não é essa prova, mas a desproporção que existe entre a “realidade objetiva” e a “realidade formal” da idéia de Deus, diante de um paradoxo anti-grego de uma idéia que em “mim” é posta, uma vez que foi dito por Sócrates que seria impossível que uma idéia fosse colocada em um pensamento sem que aí já não estivesse. “A noção cartesiana da idéia do Infinito designa uma relação com um ser que conserva a sua exterioridade total em relação àquele que o pensa. Designa o contacto do intangível, contacto que não compromete a interioridade daquilo que é tocado” (LEVINAS, 1988a, p. 37). Para usar a constatação de Bourdieu (1999), à qual se retornará no próximo item: o objeto real e objeto construído pela percepção se distanciam.
Desse modo, o Outro não pode ser tornado “finito”, o sentido do Outro não é passível de abarcamento pelo Eu (Mesmo), é Infinito, o sentido do outro (Infinito) é bem maior que a consciência (finito). 10 O Outro escapa à Totalidade. O encontro com o Outro não se daria na perspectiva de uma metafísica da diferença ontológica – que, como afirma Mbembe (2001), no pensamento africano, estruturou-se em uma base racista, enfatizando o discurso do nativo e afirmando que sua especificidade estava marcada em
10 Não cabe aqui adentrar na discussão fustigada por Gilroy (2001), para quem, judeus e negros não tem se relacionado para falar sobre holocausto e escravidão. Para ele, Emmanuel Levinas coloca o holocausto como algo tão singular que se afasta de outras experiências, não podendo ser comparado, sugerindo que a concepção eurocêntrica da modernidade não permite relacionar racismo antinegro e anti-semitismo. Comparação que é, em algumas de suas dimensões, brilhantemente feita por Spitzer (2001) quando analisa, através de uma abordagem comparativa e transcultural – no tempo e no espaço (num período que vai de 1780 a 1945), a experiência de assimilação e mobilidade dentro da sociedade de classes, de várias gerações de três famílias, uma afro-brasileira, uma africana e uma austro-judaica, tratando de contatos interétnicos (“inter-raciais”), conflitos interculturais, dinâmicas de gênero e de geração, alteridade, nacionalismos e sionismo, suicídio e angústias, revoluções.
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sua “raça” e na cor de sua pele – mas sim, no encontro frente a frente, interface.
3. Tornou-se lugar-comum o suposto da existência de uma certa ou grande distância entre o objeto real e objeto construído pela percepção. Pierre Bourdieu (1999, p. 46-47; 52) já afirmara que “nada se opõe mais às evidências do senso comum do que a distinção entre o objeto „real‟, pré-construído pela percepção, e o objeto da ciência, como sistema de relações construídas propositalmente”. O objeto de pesquisa depende da problemática teórica em relação à qual ele está direta e inevitavelmente relacionado, afinal de contas, “o real nunca toma a iniciativa já que só dá resposta quando é questionado”. Sendo assim, não há imortalidade dos fatos, a teoria está presente e domina o trabalho experimental em todas as suas etapas. Ora, não se lida com dados, mas com fatos construídos. Para cada dado, há pressupostos teóricos que o determinam enquanto tal. O controle da prática depende do maior conhecimento das questões implícitas na teoria que a forma.
As teorias do objeto e as definições dos objetivos de pesquisa exigem utilização de determinadas técnicas de amostragem. Também as técnicas não são neutras. O trabalho científico é limitado quando se acredita que operações “axiologicamente neutras” são também “epistemologicamente neutras”. É porque a teoria do conhecimento está implicada nos atos da prática que ela precisa ser examinada. As técnicas sempre produzem situações essencialmente diferentes das experimentações sociais concretas. Uma vez que sempre se faz mister fazer escolhas epistemológicas, é preciso ter consciência de suas implicações, “todo objeto propriamente científico é consciente e metodicamente construído, e é necessário conhecer tudo isso para nos interrogarmos sobre as técnicas de construção das perguntas ao objeto” (BOURDIEU, 1999, p. 42; 58; 64).
De fato, como afirma Merllié (1996, 108), “toda observação científica incide sobre fenômenos metodicamente escolhidos e isolados dos outros, isto é, abstratos”, variações estatísticas podem resultar das variações das condições da própria avaliação escolhida e programada. Desse modo, todo e qualquer resultado depende da forma de questionamento e das definições conceituais introduzidas nele.
Entretanto, há uma representação do trabalho científico que distingue como duas fases diferentes e sucessivas a coleta dos dados e sua análise. Tal representação “não permite verificar que a
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construção dos dados é, em si mesma, teórica e que não é possível fazer a dissociação entre a „mediação‟ de um fenômeno e sua análise ou interpretação”. A realidade dita “natural” é, em verdade, um “produto fabricado” que “não é simples véu que bastaria levantar para descobrir a realidade social: existem efeitos sociais e ele próprio é uma realidade social a ser analisada como tal” (MERLLIÉ, 1996, p. 134; 168).
O fato é que as categorias e métodos estão no cerne da produção do conhecimento. Porém, como mostra Oliveira, a despeito da importância do método, o cientismo metodológico impôs limitações às dimensões da subjetividade e das prenoções no processo de conhecimento das ciências sociais e humanas, imposição tal essa que se tentou exorcizar através do pensamento hermenêutico. Para o cientismo, as prenoções devem ser afastadas do trabalho científico. Em última instância, este trabalho é uma negação daquelas prenoções, é preciso representar o real para além do pré-real. Contrário a essa perspectiva, para a hermenêutica (gadameriana), é exatamente esse “caráter essencialmente preconcebido de toda compreensão” que “confere ao problema hermenêutico toda a agudeza de sua dimensão” (OLIVEIRA, 2000, p. 83-84).
Sob este prisma, o conhecimento é pré-estruturado. Uma pré-estruturação que revela o quanto o sujeito cognoscente e o objeto cognoscível estão envolvidos com o “mundo da vida”. Não se conhece. Na verdade, se reconhece, e “só conhecemos aquilo que nós estamos (pre)parados para conhecer”. É só a partir do iluminismo – autoconsciência da modernidade – que o conceito de pré-juízo adquire sentido pejorativo. Mas, o pré-juízo não se refere a algo falso e sim a algo presente no conceito e que pode ser avaliado positiva ou negativamente (OLIVEIRA, 2000, p. 84).
Desse modo, não se pode, como desejaria Durkheim, ignorar o papel da compreensão intersubjetiva como preliminar a quaisquer modalidades do conhecimento científico. O método não é o detentor absoluto do monopólio da produção do conhecimento referente à realidade sócio-cultural. Como informa Ricouer (Apud. OLIVEIRA, 2000, p. 88), o método, não conseguindo abrigar sob seus parâmetros toda a realidade sócio-cultural, “deixa escapar algo cujo sentido ou cuja significação esse método não está (pré)determinado a dar conta. É esse excedente de significação que somente um momento não-metódico pode aprender”. A compreensão (perspectiva hermenêutica) e a explicação (ciências empírico-analíticas) não podem ser vistas
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como algo separado, pelo contrário, são dois modos de conhecer que se complementam e são compatíveis (OLIVEIRA, 2000, p. 91-92).
Da mesma forma que é preciso relacionar compreensão e explicação, considerando o caráter preconcebido de toda compreensão, é importante lembrar uma outra relação que hoje se apresenta como óbvia: a negação entre retórica e prova. Nos discursos contemporâneos, retórica e prova se excluem reciprocamente. Entretanto, como mostra Ginzburg (2000b, p. 13; 49), “no passado a prova era considerada parte integrante da retórica”; para Aristóteles, as provas constituíam o núcleo da retórica, e essa obviedade, hoje esquecida, implica um modo de trabalhar muito mais complexo do que o feito na contemporaneidade, separando aquelas duas esferas, “a construção [retórica] não é incompatível com a prova”, ao contrário, elas se complementam.
Talvez aqui se trate mesmo de aceitar a sugestão de Ginzburg (1999, 2000a, 2000b) segundo o qual se deve entender o conhecimento como conjectural, conhecimento que é disciplinado, mas não abdutivo e generalizante; uma tentativa de lançar luz sobre as contendas entre racionalistas e irracionalistas, propondo um caminho intermediário. Segundo aquele historiador, “A idéia de que as fontes, se dignas de confiança, oferecem um acesso imediato à realidade, ou ao menos a parte dela” é uma idéia rudimentar, resquício do entusiasmo do século XIX pelo progresso científico e tecnológico que entendia a realidade como passiva diante do conhecimento. De outro lado, a idéia de que as fontes são verdadeiras muralhas que impedem a construção do conhecimento é resultado de um outro entusiasmo, presente nos relativistas céticos de nossa época. “As fontes não são nem janelas escancaradas, como crêem os positivistas, nem muros que obstruem a visão, como acreditam os [relativistas] céticos”. Elas podem ser comparadas a “vidros deformados”, que precisam ser conjecturalmente reconstruídos, porém, isso não implica que não seja possível conhecer. O conhecimento é possível. (GINZBURG, 2000b, p. 48-49).
4. Mas um conhecimento que é apenas possível e que não se traduz em sabedoria do mundo não tem razão de ser, segundo Santos (1989, p. 168). É fundamental que na relação produção científica e conhecimento comum condições teóricas e condições sociais se interconectem, para que assim, haja, de fato uma “dupla ruptura epistemológica”. A primeira ruptura é a criação de um conhecimento novo e autônomo em confronto com o senso
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comum. Já a segunda ruptura epistemológica consiste em aquele conhecimento se destinar a transformar o senso comum e transformar-se nele. Não há sentido em criar um conhecimento novo se ele não se destina ao senso comum.
Algumas condições teóricas seriam necessárias para que haja a dupla ruptura epistemológica: 1) o (cada vez mais incompreensível) sentido da ciência deve ser problematizado, submetendo-se, assim, a epistemologia (consciência da ciência) à reflexão hermenêutica; 2) A reflexão hermenêutica resulta na desdogmatização da ciência, uma vez que desconstrói os objetos teóricos que a ciência constrói sobre si própria; 3) é a concepção pragmática da ciência (na qual a prática científica é vista como um processo intersubjectivo que se justifica teórica e sociologicamente pelas conseqüências que produz na comunidade científica e na sociedade) que permitirá escapar da circularidade da teoria; 4) os sentidos que as conseqüências do trabalho científico produzem no mundo serão objeto da reflexão hermenêutica e da sociologia crítica da ciência; 4) “As lutas de verdade são travadas com discurso argumentativo e a verdade é o efeito de convencimento dos vários discursos de verdade em presença e em conflito”. Já a objetividade “é a propriedade do conhecimento científico que obtém o consenso no auditório relevante dos cientistas”; 6) a dupla ruptura epistemológica como estratégia de transição pretende “um novo senso comum com mais sentido, ainda que menos comum”; 7) a reflexão hermenêutica sobre o papel da ciência moderna “visa aumentar a nossa compreensão do mundo e do nosso lugar no mundo” (SANTOS, 1989, p. 168- 172).
Além das condições teóricas, Santos (1989, p. 174-184) apresenta condições sociais necessárias para que haja aquela dupla ruptura. O sentido de nossa presença no mundo é uma configuração de sentidos, haja vista que somos configurações humanas que vivem em quatro quotidianidades, a doméstica, a da produção, a da cidadania e a da mundialização. Na sociedade há várias formas de poder e de saber que negociam sentidos, encenam presenças, dramatizam enredos e amortizam diferenças. A diferença da comunidade científica para outras comunidades é que sua produção é quase toda ela para consumo externo, destina-se a ser aplicada no interior de vários contextos sociais. A aplicação do conhecimento científico deve ser edificante e não técnica, isto é, “quem aplica está existencial, ética e socialmente comprometido com o impacto da aplicação”, a aplicação edificante busca e reforça “as definições emergentes e alternativas
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da realidade”, dessa forma, “o cientista edificante tem de saber falar como cientista e como não cientista no mesmo discurso científico”. Pela aplicação edificante devem ser criadas possibilidades de argumentação entre o senso comum e o campo científico.
É sabido que os discursos científicos são absorvidos por sujeitos sociais que não são propriamente cientistas. Há um trânsito contínuo entre as idéias e argumentações produzidas no campo da ciência e aquelas da sociedade em geral. Obviamente, os modos de apropriação e reapropriação daquele saber são diversos. Conteúdos do mundo científico não são linearmente recebidos pelo senso comum. O campo dos Estudos Étnicos, que se gesta a partir de demandas sociais, defronta-se, já em sua constituição e desenvolvimento, de modo acentuado, com este trânsito.
Na verdade, no caso do Brasil, há uma relação produtiva e tensa entre movimentos sociais (particularmente simpatizantes, militantes e alas do movimento negro) e a academia. Certamente, um dos contextos em que se pode ver essa tensão revelada de modo claro é na definição do próprio projeto político-acadêmico dos Estudos Étnicos, pois, se oficialmente aquele campo de estudos se pretende “um projeto anti-racista e anti-colonial, mas não quer ser um projeto étnico” (SANSONE, 2005, p. 4), esta é uma opção não aceita em sua plenitude por todos aqueles que o compõem, que constituem a sua estrutura política-acadêmica. Não seria possível separar dentro daquele campo a opção “ser anti-racista” da opção “ser étnico”. Escolha que revela uma opção política e que deverá ter obviamente implicações epistemológicas, uma vez que os Estudos Étnicos aqui pensados são espaços de produção do conhecimento, de um conhecimento que, se seguidas as orientações de Santos (1989) deverão se transformar em sabedoria do mundo.
5. Os Estudos Étnicos também são gestados dentro de discussões mais amplas que se situam na intersecção entre ciências humanas e biologia. Atualmente, este (des)encontro tem se dado de modo saliente através da aproximação de “raça” com “DNA”, ambos ícones globais com sentidos locais. Se, de um lado, sem auxílio de nenhuma aparelhagem é possível ver uma suposta “raça” em qualquer ser humano, de outro, são necessários olhos microscópicos para enxergar o DNA. Ora, aspectos culturais, ambientais e biológicos são fatores que podem influenciar, e de modo interconectado, as relações sociais.
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No mundo cotidiano, o social e o genético se misturam. Segundo Gilroy (2001), os genes que justificavam a escravidão têm sido utilizados para justificar identidades negras contemporâneas. “Raça” mostra algo socialmente construído com o substrato de uma idéia de base biológica. O sangue, a “raça” e a diferença não raro têm caminhado juntos. “Raça”, tanto em biologia como nas ciências humanas é uma construção discursiva, mas não basta ser anunciada cientificamente como inexistente para desaparecer.11
O caso da anemia falciforme (DINIZ, GUEDES, 2003) bem revela isso. Nos Estados Unidos, nos anos 1940, emerge o problema da anemia falciforme passa a ser discutido e enfrentado de modo mais claro. O “sangue negro” era visto como uma ameaça tanto para a “raça negra” como para a “raça branca”, motivo para manutenção da segregação “racial”, misturar-se seria um perigo. Nos anos 1960, ocorre a apropriação da doença por movimentos negros. A anemia falciforme, indicada pela hemoglobina S, passa a ser vista como doença (predominantemente) negra (CALVO, 2005). Setores dos movimentos negros teria proposto aquela hemoglobina como prova de negritude, tal hemoglobina seria um certificado de origem que garantiria “ser negro”. O entendimento de que a “população negra” sofre de problemas de saúde específicos se inicia no Brasil com o Programa de Direitos Humanos do governo Fernando Henrique Cardoso. Para Peter Fry (2004, p. 23), o discurso sobre anemia falciforme como “doença racial”, que se baseia numa taxonomia binária (“brancos” e “negros”), fortalece a “naturalidade” da noção de “raça negra”. De outro lado, “o reconhecimento da lógica mendeliana da distribuição da doença e do traço falciforme”, fundado numa taxonomia de múltiplas categorias, “fortaleceria a „naturalidade‟ da mistura genética brasileira, o que parece anátema no contexto da crescente racialização do país”.
O fato é que atualmente, a chamada “nova genética” tem contribuído significativamente para a construção de novas identidades, “o muitíssimo novo (a genômica) interage e fricciona-se com o muito antigo (raça e tipologias)” (SANTOS, 2004, p. 23). Ela afirma ser possível codificar o genoma humano, sendo capaz de dizer o que é normal e o que é doente. Mas como fazer tal distinção sem antes predefinir o que é (a)normalidade genética? A nova genética afirma que as doenças são genéticas, embora não saiba dizer por que os genes começam a trabalhar erroneamente. Num
11 O conceito de “raça” “foi integrado à medicina e é [hodiernamente] usado para o estudo e sistematização das populações” (FURTADO, 2006, p. 48).
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primeiro momento, os resultados dessas pesquisas não raro têm associado certas doenças a este ou aquele grupo étnico ou mesmo “grupo racial”, estigmatizando-os.12 Num segundo momento, alguns argumentam que tais estigmas estaria sendo sendo de certo modo reificados quando são tomados (como positivação do negativo) por movimentos sociais e étnicos para construção de identidades. Nos dois momentos, não se questionaria que caracterizar indubitavelmente que esta ou aquela doença é (predominantemente) negra ou (predominantemente) branca é uma operação minimamente problemática, dado o fato de que resultados de pesquisas científicas dependem dos critérios pré-definidos para efetuar a própria pesquisa. E, em última instância, reafirmar-se-ia que há irremediáveis diferenças de sangue e de etnia/“raça”.
7. Nessa direção, alguns autores têm apontado o que seria um dilema fundamental de alguns estudos e movimentos baseados em identidade e cultura, qual seja: o critério que determina que um certo indivíduo faz parte de um grupo é também o critério da discriminação desse indivíduo. Talvez possamos afirmar que se trata de um dilema tanto social (para os movimentos) quanto epistemológico (para os estudos), um dilema sócio-epistemológico.
Segundo Stolcke (2005), nas últimas duas décadas o Brasil tem se deparado com uma avalanche de movimentos fundamentados em políticas de identidade, a maioria de inspiração claramente estadunidense. Nesse processo, “identidades coletivas são recuperadas e/ou inventadas”. Nos programas e linhas de pesquisa, nos eixos temáticos e grupos de trabalho de diversos eventos têm aparecido insistentemente a trilogia “raça/etnia, classe, sexo/gênero”. Trata-se de uma trilogia onipresente. Algumas vezes, um outro termo é acrescentado, “orientação/opção sexual”. Entretanto, geralmente, não se tem perguntado algo que, segundo a pesquisadora, é mais fundamental, a saber, como essas categorias se relacionam e em que espaço e tempo elas são construídas, o que leva ao risco de se cair em anacronismo.
As idéias de classificação variam ao longo do tempo. São diferentes as racionalizações da diferença. As primeiras idéias de classificação não se referiam à “raça”. A idéia do “sangue” (azul, puro, impuro), por exemplo, não se referia a uma questão biológica, mas a uma questão moral e religiosa. Assim, o sangue era uma
12 É cada vez mais comum bulas de remédios trazerem notas orientando acerca de contra-indicações de caráter supostamente étnico-racial.
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metáfora da condição moral e religiosa. Em geral, nessas classificações, o outro é criado sob uma justificativa desigual. Uma questão central seria perguntar sobre como os mestiços foram feitos, isto é, como são construídas as exclusões. No caso do contexto colonial espanhol, as justificativas para a sua construção foram culturais e não raciais (STOLCKE, 2005).
Desse modo, para Stolcke (2005), a mestiçagem não precisou de diferenças reais de raça para existir. As categorias utilizadas para classificar os mestiços poderiam ter sido o peso, a forma do nariz, ou qualquer outra, e não necessariamente a cor. Com a mestiçagem, há uma crescente obcecação da sociedade com a disciplina, com o sexo, com a cor. Não é a diferença que precede a mestiçagem. É a mestiçagem que gera a diferença. As diferenças são inventadas. O dilema estaria em que para combater desigualdades geradas por diferenças inventadas (invenções historicamente datadas), acaba-se por reificá-las.
Kuper (2002, p 13; 311), que afirma não ter muita simpatia pelos movimentos sociais que se baseiam em nacionalismo, identidade étnica ou religião, “exatamente aqueles que exibem maior tendência de invocar a cultura para motivar ação política”, afirma que, “a identidade cultural jamais pode fornecer uma orientação adequada para a vida. Todos nós temos identidade múltiplas, e mesmo que eu admita ter uma identidade cultural primária, pode ser que eu não queira me ajustar a ela”. Nessa mesma direção, Appiah sugere que pode ser que o indivíduo não esteja disposto a aceitar um papel estereotipado, a seguir uma certa linha de partido. Mas, uma vez que afirma apoiar a causa de um dado movimento (movimento gay, movimento negro, etc.), a pessoa descobre que a sociedade espera que ela corresponda a expectativas rígidas sobre a sua própria maneira de se comportar (APPIAH, 1997). Considerando-nos apenas como seres de uma dada cultura, deixa-se “muito pouca margem para manobra ou para questionar o mundo” em que se vive. E, por fim, existe uma objeção moral a essa tendência: “Ela tende a desviar a atenção do que temos em comum em vez de nos estimular a nos comunicarmos através de fronteiras nacionais, étnicas e religiosas, e a nos aventurarmos além delas” (KUPER, 2002, p. 311).
Analisando discursos que construíram o “sujeito africano”, Mbembe (2001) nota que em nenhum momento aquele sujeito pôde adquirir integralmente sua própria subjetividade, isto é, tornar-se consciente de si mesmo. Isso não foi possível porque desde cedo tal tentativa encontrou duas formas de historicismo que o impossibilitaram: o “economicismo” (que se apresenta como
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corrente democrática e progessista, na qual “a manipulação da retórica da autonomia, da resistência e da emancipação serve como o único critério para determinar a legitimidade do discurso „africano‟ autêntico”) e a metafísica da diferença (que enfatiza a “condição nativa” e “promove a idéia de uma única identidade africana, cuja base é o pertencimento à raça negra”). Ora, ambos discursos se desenvolveram dentro de um paradigma racista, são “discursos de inversão” que “retiram suas categorias principais dos mitos a que afirmam se opor”, reproduzindo, assim, “suas dicotomias (a diferença racial entre negro e branco; a confrontação cultural entre povos civilizados e selvagens; a oposição religiosa entre cristãos e pagãos; a convicção de que raça existe e está na base da moralidade e da nacionalidade)”.
Diante disso, “à obsessão com a singularidade e a diferença”, Mbembe (2001) propõe que “devemos opor a temática da igualdade”. Entretanto, tal sugestão nos faz repensar uma velha e ainda forte constatação, bem lembrada por Gebara (2000), a de que muitas vezes o discurso sobre a igualdade universal dos seres humanos ocultou (e oculta) a desigualdade histórica e cultural na experiência vivida, e esse oculto atingiu (e atinge) muito mais pobres que ricos, muito mais negros que brancos e muito mais mulheres que homens.
Apontar elementos que se aproximam de uma possível Epistemologia dos Estudos Étnicos é adentrar ou esbarrar em uma série de questões sociais, políticas, históricas, culturais, econômicas e biológicas, questões estas que tanto influenciam a produção daquele campo de estudos quanto são por ele modificadas. Nos Estudos Étnicos, os conceitos e problemas teórico-metodológicos, os paradigmas epistemológicos são pensados em torno de discussões científicas mais amplas e frequentemente se defrontam com reivindicações relacionadas a demandas sociais.

 
REFERÊNCIAS
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